
27/02/07
Amor
em tempos de guerra
Amor em tempos de guerra, amor em tempos de paz. Nunca o
tema do amor foi tão evidenciado como na contemporaneidade.
Os filósofos se ocuparam do tema desde o princípio
da filosofia: Sócrates sustentava o amor como falta
enquanto que Aristóteles dizia que o amor é
uma potência que tem sua forma principal a amizade.
Para Sartre, mais atual, o amor não pode existir,
porque a vida entre os homens é conflito.
Se o amor ocupou um campo
fecundo nas especulações filosóficas
de outrora, o mesmo encontra-se em lugar de destaque e o
discurso amoroso constitui-se como um dos motores do universo
midiático, produzindo novelas, filmes, literaturas
e outros.
Sendo uma característica
do tempo presente, o discurso amoroso apresenta-se como
uma forma de subjetivação construída
pelas instâncias midiáticas por práticas
discursivas. Refere-se a um modo de apreensão na
atualidade que se manifesta de forma mediada pelo consumo.
No dizer da psicanalista carioca Beth Milan "a arte
de amar é hoje a de gozar e o saber dos sexólogos
nos governa; ao mito do amor eterno substitui-se o do
orgasmo genital perfeito. O amor é o sexo programado,
o mesmo para todos, exigência de conformidade às
regras sexológicas". Sob o imperativo do gozar,
o amor constituiu-se como uma performance sexual exaltada
pelas mídias. Construído de forma estereotipada,
o amor preconizado pelos veículos de comunicação
revela-se um poderoso instrumento de vendagem e comercialização
de produtos, além da possibilidade de construção
de modelos comportamentais.
O semiólogo francês
Roland Barthes. sustenta, no seu livro lançado na
década de 1920, que o discurso amoroso é falado
por muitos e sustentado por poucos e que uma escrita amorosa
caracteriza-se pelo desejo ardente de uma resposta, como
uma carta endereçada a um outro que espera pelo retorno.
Para esse autor:
"... o discurso amoroso é hoje de uma extrema
solidão. Tal discurso talvez seja falado por milhares
de sujeitos (...), mas não é sustentado por
ninguém; é completamente relegado pelas linguagens
existentes, ou ignorado, ou diferenciado ou zombado por
eles, cortado não apenas do Poder, mas também
de seus mecanismos (ciência, saberes, artes). Quando
um discurso é assim lançado por sua própria
força na deriva do inatual, deportado para fora de
toda gregariedade, nada mais lhe resta além de ser
o lugar, por exíguo que seja, de uma afirmação".
Desse modo, o discurso amoroso passa a se inscrever como
um discurso contemporâneo que se localiza, em um certo
sentido, na marginalidade, pois é excluído
do Poder por seus mecanismos e permanece à deriva
do inatual.
Utilizando-se de fragmentos de textos de autores como Freud,
Sartre, Victor Hugo, Barthes busca apresentar os modos de
aparição do discurso amoroso, criticando o
apagamento que o poder e seus mecanismos fazem do mesmo.
Aparecendo de formas várias, tais como Ausência,
Sexo, Paixão, Signos, Anulação, dentre
tantos, o discurso amoroso configura-se, à primeira
vista, como o discurso Mestre na contemporaneidade, sobretudo
aquele baseado na dimensão do sexo, na qual a mulher
aparece como a figura principal. Repetindo certos traços
históricos, o discurso amoroso imprime na mulher
a marca da ausência, como aquela que o sustenta e
o perpetua. "Historicamente", diz Barthes, "
o discurso da ausência é sustentado pela Mulher:
a mulher é sedentária, o Homem é caçador,
viajante (...). É a mulher que dá forma à
ausência, elabora-lhe a ficção...".
Denominado também de amor romântico (1), o
amor circulante na atualidade, veiculado pelas mídias,
apresenta a felicidade como algo possível de ser
alcançado tão somente pelas vias do amor romântico,
só é possível ser feliz vivendo um
romance. Todas as expectativas e idéias do amor romântico
são passadas como uma única forma de amor,
e o sujeito aprende a sonhar e a buscar viver tal encantamento.
Como componente fundamental para a realização
de tal amor, a forma programada, standartizada, os padrões
de amar e ser amado são produzidos e veiculados como
receitas do bem-viver o amor, assumindo a função
que Ruth Amossy denomina de Prêt-à-porter
do espírito.
De forma paradoxal, o amor romântico constitui-se
como fundamento do casamento moderno no ocidente, mesmo
que o romântico se sustente, teoricamente, pela paixão
e pelos obstáculos a ele impostos. O casamento, por
sua vez, tende a ser rotineiro e monótono e se pretende
duradouro. Entretanto, não se concebe para o matrimônio
outra razão que não seja o amor romântico,
como aquele que levará os sujeitos a uma completude.
A ideologia do amor romântico pressupõe a possibilidade
de se estabelecer um vínculo emocional durável
com o outro, tendo-se como base as qualidades intrínsecas
desse próprio vínculo. Na Idade Contemporânea
se consolida de vez o amor romântico burguês,
fortalecido até os dias de hoje. Ele é baseado
na crença de que o casamento é o único
meio de realização amorosa.
Para o psicanalista Fábio Thá, a construção
de um certo modo de ser dos sujeitos só
acontece porque há um mercado de imagens em jogo.
Imagens de sedução que prometem bem-estar
e felicidade, ao lado de imagens de horror e violência,
que trivializam a brutalidade. O que o mercado de imagens
propõe é a venda de um bem-estar ancorada
pelo imaginário construído em torno dos ideais
de felicidade. O ser faltante possui um ponto de carência,
e as imagens prometem a satisfação completa,
tentando preencher o espaço vazio do sujeito, garantindo-lhe
uma suposta felicidade. Para Thá, "o sujeito
humano é o sujeito do desejo" e as imagens no
mundo promoverão a identificação com
ideais de bem-estar.
Tais questões nos levam a pensar como o amor, em
tempos de paz ou de guerra, se configura na contemporaneidade.
Na próxima semana, abordaremos na intenção
de discutir as práticas amorosas na contemporaneidade.
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(1) Não se trata aqui,
do amor romântico preconizado pela Literatura do século
XIX. Nessa literatura, a felicidade era vista como algo
passageiro, marcada pela doença, pela morte, ou algo
assim, sendo, inclusive, inatingível, nunca vivido.
Aqui, trata-se de uma classificação de amor
que se baseia, conforme dito no corpo do texto, no mito
da felicidade completa, alcançada tão somente
por um grande amor.
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Cássio
Miranda é psicanalista, doutorando em Letras
pela UFMG e escreve todas as terças. E-mail: cassioedu@oi.com.br
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