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Terça-feira -17/04//07
FAMÍLIA, PSICANÁLISE E SOCIEDADE – Parte 1
A década de 60 viu surgir um movimento antifamiliar, marcado pela busca de relações sem repressão, uma tentativa de ruptura com a família nuclear burguesa preconizada como a família ideal. Este movimento pode ser visto como um período de inquietação crônica no grupo familiar.
Se por um lado os anos 60 presenciaram a contestação da família, por outro o tempo presente levanta-se como salvaguarda da tradição familiar, criando teorias, métodos e programas de estruturação e reestruturação deste grupo.
Da família medieval à família moderna, percebe-se diferenças alarmantes. Na idade média a criança desde muito cedo escapa à sua própria família. Nesta época, portanto, a família não podia alimentar um sentimento de afetividade positiva entre os pais e filhos. Não que não houvesse amor entre pais e filhos, mas antes, como destaca o historiador dão cotidiano, Phillippe Áries, “a família era uma sociedade moral e social, mais do que sentimental”. O século XV, por sua vez, experimenta uma transformação na realidade e nos sentimentos da família, embora ele tenha acontecido de forma lenta e profunda. As crianças deixam de ser educadas com famílias “educadoras” de oficio e passam a freqüentar a escola. Os educadores defendem a necessidade de isolar a infância do mundo dos adultos para mantê-los na inocência primitiva. Paralelamente percebe-se uma preocupação dos pais em vigiar os filhos mais de perto e não abandoná-los mais aos cuidados de outra família.
A partir do século XIX a reorganização da casa em cômodos garantiu um espaço maior para a intimidade, o surgimento da família nuclear e os progressos de um sentimento de família. A criança é agora o centro das atenções e “toda a energia do grupo é consumida na promoção das crianças, cada uma em particular, e sem nenhuma ambição coletiva: as crianças mais do que a família”, é o que nos diz Ariés.
O discurso religioso
Em uma perspectiva católica a família é o reflexo e a encarnação da comunidade trinitária, sendo assim criada como uma comunidade. Por ser o homem a mais perfeita expressão da constituição divina, tendo sido criado à imagem e semelhança de Deus ele também é ser pessoal e comunitário. Dessa forma, o homem é um ser social, comunitário por excelência que necessita do grupo familiar para crescer e desenvolver. A família é, para esse pensamento, algo que “nasce da união interpretativa do amor divino; é a proposta como pequena comunidade de vida e amor. Do amor e da vida que vêm de Deus e leva à Deus”, conforme sustenta um padre denominado Salomão.
A abordagem protestante, por outro lado, vê a família como idéia de Deus e crê as crises familiares como universais. Estão diretamente ligadas ao pecado original de Adão e Eva, uma vez que “a maldição que o pecado acarretou a Adão e Eva (Gênesis 3:16 – 20) fala de relacionamentos familiares: criação de filhos, marido dominando as suas esposas e a labuta do homem para sustentar a família”, conforme sustenta Petersen.
O discurso religioso sobre a família passa primeiramente pela noção de casal constituído a partir do casamento sendo este a união de duas pessoas que se complementam, em que cada uma se dedica a amar e a servir a outra. No casamento , o casal se torna uma nova entidade, uma corporação total, tornando-se uma só carne.
A família está projetada a ser um núcleo onde há o crescimento integral de seus membros. Tal crescimento implica na satisfação das necessidades sexuais, afetivas, intelectuais, materiais, relacionais e espirituais. Dessa maneira, “uma família cumprindo as funções básicas de reprodução, nutrição, educação e socialização, algumas das quais têm sido descritas pela sociologia e pela psicologia. Com uma visão humanista, a perspectiva religiosa acredita que a provisão afetiva parte da atitude de aceitação incondicional de cada um de seus membros. Isso significa estar presente e disponível para atender as necessidades afetivas de cada pessoa. Se a pessoa se sente aceita e reconhecida tal como é, ela alcança autonomia, tem reconhecida a sua singularidade e aumenta sua autoconfiança.
Considerações provenientes do campo Psi
O pensamento sistêmico tem como princípio central a família como um sistema, baseado na teoria geral dos sistemas desenvolvida por Von Bertallanfy nos anos 40 e na cibernética, uma ramificação desta. Sendo assim, ela é vista como um sistema aberto por estar, através de seus membros, dentro e fora de uma interação com os outros e com sistemas extrafamiliares. Por ser um sistema, as ações e comportamentos de um dos membros influenciam simultaneamente o comportamento de todos os outros, e vice-versa. Desse modo, um distúrbio mental é visto como a expressão de padrões inadequados de interação no seio familiar. A família, segundo a psicologia sistêmica, “pode ser encarada como um circuito de retroalimentação, dado que o comportamento de cada pessoa afeta e é afetado pelo comportamento de cada uma das outras pessoas”, diz a psicoterapeuta CALIL.
Os conceitos de identificação-projetiva, continência e contratransferência descritos por pós-freudianos – M. Klein, Bion, winnicott e Fairbairn – passam a ser aplicados em Londres como uma aposta na possibilidade de se criar uma terapia familiar de abordagem psicanalítica. Segundo este grupo, a dinâmica familiar envolve duas unidades sociais primárias: a família de origem e a família nuclear. A família de origem é aquela através da qual “cada um dos cônjuges construiu seus padrões de relacionamento e a família nuclear, através da qual os padrões de relacionamento aprendidos e vivenciados, nível consciente e inconsciente, pelos cônjuges durante e infância e adolescência são repetidos e continuamente desenvolvidos”, sustenta CALIL.
Esta concepção, de inspiração psicanalítica, propõe um “divã” para a família argumentando que Freud leva em conta o fato de que não se pode conceber o indivíduo fora de seu ambiente. Partindo da teoria dos grupos e da aproximação que Freud tenta estabelecer entre psicologia individual e de grupo, onde ele afirma que toda psicologia social é ao mesmo tempo uma psicologia social, visto que o sujeito que busca o analista traz consigo toda uma gama de identificações construídas na rede social. Assim, a terapia familiar também é uma terapia pela linguagem, do grupo familiar como um todo, que estuda a dinâmica grupal-familiar regida por forças inconscientes. Seu objetivo é propiciar a autonomia dos psiquismos individuais de cada um dos membros familiares interpretando, por isso, as emoções, o amor conjugal, filial, fraterno e o funcionamento dos papéis sexuais presentes no seio familiar. Ao que tudo indica, a terapia familiar busca ajustar os indivíduos no grupo familiar de tal forma que as relações tornem-se menos tensas e mais compreensivas. Enfim, ele visa “ao desenvolvimento do amor pela compreensão e pelo conhecimento nos membros da família”, conforme defende EIGUER.
Na próxima semana apresentaremos a perspectiva de uma psicanálise lacaniana sobre a família e seus efeitos na contemporaneidade.
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Cássio
Miranda é psicanalista, doutorando em Letras
pela UFMG e escreve todas as terças. E-mail:
cassioedu@oi.com.br
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