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Terça-feira -27/03/07
APERITIVOS PSICANALÍTICOS SOBRE A MULHER E O FEMININO – Parte final
Terminamos nossas reflexões sobre o feminino com um passeio panorâmico nos textos de Freud e Lacan na intenção de verificar como os dois principais nomes da psicanálise pensaram o feminino.
Em se tratando da sexualidade feminina, os caminhos propostos pela Psicanálise servem como um percurso pertinente na tentativa de esclarecer como a estruturação do feminino acontece.
Após 30 anos de investigação, Freud apontou sua conclusão sobre a sexualidade feminina: “O grande problema que nunca foi esclarecido e ao qual não fui capaz de responder, apesar de meus trinta anos de investigação da alma feminina é o seguinte: que deseja a mulher?”. Desde seu legado, dois pontos podem ser tomados como referência. Primeiramente, é preciso considerar que foram as mulheres que possibilitaram a Freud o início da construção de sua teoria.
O segundo ponto passível de ser destacado no legado de Freud refere-se ao enigma em torno da feminilidade. O que há de tão oculto e enigmático na mulher e não pode ser encontrado na posição masculina? O que faz com que tal enigma não reduza o feminino ao gênero?
Desde seus primeiros escritos, Freud postula que o material fornecido pela biologia e pela anatomia é insuficiente para definir o que é masculino e o que é feminino.
A Psicanálise problematiza as relações de gênero dentro da clássica oposição masculino/feminino constatando clinicamente que a diferença entre os sexos é experimentada pelos sujeitos não a partir da anatomia, mas é experimentada a partir de uma posição subjetiva.
Inicialmente, a proposta freudiana situa-se em torno do enigma da feminilidade pelo fato de a mesma não ser dada a priori. O que Freud busca investigar é como a menina se torna mulher e o seu pensamento busca verificar “como uma mulher se desenvolve a partir da criança de disposições bissexuais”. Sendo assim, a menina como um pequeno homem só se tornará mulher através de um longo e árduo trabalho psíquico. Sem meias voltas, Freud sustenta que “devemos reconhecer que a menina é um pequeno homem” tendo que sobrepujar as dificuldades que surgem na trajetória do “tornar-se mulher”. Tal constatação faz Freud sustentar que nas mulheres, a “... vida sexual é regularmente dividida em duas fases, a primeira das quais possui um caráter masculino, ao passo que apenas a segunda é especificamente feminina. Assim, no desenvolvimento feminino, há um processo de transição de uma fase para a outra, do qual nada existe de análogo no homem”. A psicanalista francesa Geneviéve Morel opõe-se a esta concepção acreditando que a feminilidade já está colocada, porém de forma encoberta pela histeria.
Interrogações surgem em torno da construção teórica: todo feminino se confunde coma a histeria? Quais as possibilidades de diferenciação entre o percurso feminino e o percurso histérico? Percebe-se, pelos discursos circulantes, que o senso-comum confunde a mulher com a histeria. Está colocado na fala dos homens que as mulheres são histéricas. O discurso da ciência médica ponderou, por muito tempo, que a histeria é algo particularmente ligado à mulher, pois a designação proveniente do grego associa histeria ao útero – hysterys. (...).
Desde uma proposta de sexuação, é possível encontrar em Lacan uma lógica particular que provoca uma diferenciação entre o discurso da Psicanálise e o discurso da biologia. Para a biologia, há dois sexos anatomicamente constatados apontando para um aspecto natural do sexo. Assim, o sexo é physis, natureza, o que faz com que o humano seja um animal como os outros. No discurso psicanalítico, é possível encontrar algo que ultrapassa o saber da biologia, uma vez que o sexo natural é atravessado pela linguagem e o ser passa a se constituir como sujeito ao ser atravessado pela palavra. Deixando de ser physis, surge em seu lugar sexus, que em latim quer dizer corte. Se sexo quer dizer corte, podemos afirmar que em Psicanálise há algo do sexo que se difere do outro. No caso das mulheres, ultrapassa a oposição masculino/feminino e à relação de gênero, impedindo que haja uma inscrição do genital feminino na ordem simbólica. Isso nos mostra que a relação sexual não existe enquanto uma proporção ou equivalência sexual.Como representante do ensino de Lacan, Morel aponta três tempos da sexuação, os quais são:
a) Primeiro tempo - Tempo da diferença anatômica natural: o nascimento é capaz de balizar a diferença. Com o progresso da ciência, é possível antecipar tal fato pelos recursos de ultra-som e outras técnicas. Para Morel, esse momento é mítico, pois só assume um valor de fato em um outro momento, quando a natureza for significantizada estabelecendo uma diferença.
b) Segundo Tempo - Tempo do discurso sexual: é o tempo em que a diferença passa a ser marcada pelas vias do significante. A natureza assume uma diferenciação à medida que é interpretada. Nesse tempo, há uma indeterminação, um “se” que envolve o sujeito pelas vias do discurso do Outro, sendo, para Morel, “o ambiente que o envolve, o médico, o discurso do Outro, enfim”. Morel afirma que esse momento, o do “se”, da indeterminação, constitui-se como um erro comum do discurso sexual que possibilita a castração e a construção do laço social. Ao ser significantizada, a natureza torna-se semblant, aparência, e ser “garoto” não quer dizer apenas ser o portador de um pênis, “mas aquele capaz de virilidade, capaz de ‘ser homem’(tal como ‘se’diz)”. Da mesma maneira, “garota” perde seu sentido anatômico para assumir a posição de “privação, falta, e também o de feminilidade, beleza, enigma, etc”.
Para Freud a feminilidade constitui-se como um enigma. Segundo o modo de pensar masculino, o estatuto da feminilidade durante todos os tempos foi o estatuto de um enigma, de algo desconhecido, de um continente negro e misterioso: “os homens em todos os tempos meditaram sobre o enigma da feminilidade”, diz Freud. E continua sua reflexão afirmando que são as mulheres mesmas este enigma, não se devendo esperar nada delas.
Em que sentido para Freud a feminilidade é um enigma? A feminilidade é vista como um enigma por ela não ser dada a priori, ou seja, não há um traço no inconsciente que determine o que é ser feminino. Se a anatomia distingue dois sexos, o psiquismo inicialmente não traz uma inscrição do que é ser um homem e do que é ser uma mulher.
Desse modo, conclui-se que a feminilidade, o feminino é uma construção e, tornar-se mulher, não no sentido de uma Simone de Beauvoir, é um intenso e árduo trabalho psíquico, uma vez que sustentar o desejo de aí permanecer é um trabalho que requer um esforço e, podemos dizer, um esforço de poesia.
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Cássio
Miranda é psicanalista, doutorando em Letras
pela UFMG e escreve todas as terças. E-mail:
cassioedu@oi.com.br
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