
25/08/07
O PARADOXO DO READY-MADE
OU CÁ COM OS MEUS BOTÕES
ADORNADOS DE CRÍTICAS
“Toda
arte é, como a morte, uma inércia do instante
e, portanto, uma modificação na velocidade
do tempo vivido” (Paul Virilio, Guerra e cinema).
Abro com uma
epígrafe-generalização de Paul Virilio
para, depois, já ir me precipitando: também
sou simpatizante de alguma arte contemporânea. Assim,
bem de repente mesmo, para me salvar de qualquer revelia
ou contraponto, como uma pequena chuva que cairia entre
dezembro e março e logo mudaria segundo a direção
de um vento novo, mais cheio de facilidades e de mobilidade.
Acompanho, também, a tendência - um pouco a
reboque e no rastro dos novos textos binoculares –
à autofigurativização de minha autoria
e a implementação de uma primeira pessoa já
na cabeça deste escrito. Antes que a delonga faça
jus ao nome, vamos à questão estritamente
pessoal (ou não).
O problema é que há alguns dias voltei a me
intrigar com o fato de que tudo pode vir a ser arte. Não
é nada muito novo, mas oras... Assim, nada acaba
sendo arte. Ou acaba?
Segundo os “novos apreciadores de arte”, acaba.
A visão comum a eles é que, sem as balizas
técnicas impostas pelos gêneros artísticos
separados, existiria mais democracia no fazer e no apreciar
artístico; na fruição (Análise?
Questionamento? Experiência?) de um objeto-questão,
de disjunções semânticas, ready-mades
e instalações, já não haveria
uma aproximação pelo belo: o novo e “conjuntivo”
objeto de arte seria atrativo a partir de uma explicação
intelectiva.
Man Ray - Rayografia
(1927)
Pode
parecer um pouco estranho, mas arte já não
é como foi criada: deleite estético para os
sentidos. Deixou de ser isso faz algum tempo, nós
é que perdemos o bonde da história. O radicalismo
das experimentações de quem a faz no nosso
tempo não é mais com o intuito de trazer regozijo,
mas de questionar, trazer ao pensamento um fluxo de combinações
novas e incrustar no juízo alguma revelação
antiparadigmática. Tudo pode vir a ser arte mesmo,
se seguir à risca algum sistema de arte regido pelo
dinheiro.
Ora, um dos problemas disso tudo é a totalização,
que se de tudo pudéssemos tirar arte, incluiríamos
também no pacote a estética. Coisa que não
acontece quase de modo algum nos novos barulhos e máquinas
non sense do nosso tempo. E ainda pior: com esse modelo
de legitimação, acabamos cindindo com um abismo
a sociedade da qual a arte deve prescindir, entre os “herméticos”
e os “ingênuos”, dois pólos burros
que têm intrinsecamente lógicas muito perigosas
a propor.
Marcel Duchamp
- Roda de bicicleta (1913).
Outra
questão advém da desvalorização
dos especialistas (e sua técnica) enquanto artistas
verdadeiros do nosso tempo. Será que qualquer indivíduo
sem conhecimento do material no qual está impondo
seu discurso pode trazer algo realmente mais importante
acerca daquilo que ele quer questionar? Ou seja, se a arte
nova independe das divisões antigas do classicismo,
se o artista não necessita mais de um material específico
para a sua atuação, se músicos, pintores,
literatos (etc.) não são mais artistas do
que, antes, poderiam ser nada dentro do quadro social (ou
artístico), como resolver o problema (ou a solução?)
de estarem os novos artistas em completude aquém
das possibilidades expressivas do seu material bruto? Enfim,
como conseguir a eficácia expressiva máxima
de um objeto artístico que acaba sendo feito por
alguém que entende menos, por exemplo, de um ferro
de passar roupas do que a própria passadeira de roupas
(ou do seu criador)?
Com isso, cria-se uma inversão nos valores do produto
final. Não que tenhamos mesmo que advir de uma medida
máxima da expressão (se é que isso
existe), mas é, com efeito, brindar a ignorância
com a publicização do objeto ingênuo,
mas ao mesmo tempo hermético, da coisa sem sentido
e ao mesmo tempo simplória.
Para completar, no que toca a fuga das características
belas, uma nova pergunta: a arte-questão não
se distancia dos que não se interessam pelo seu questionamento,
ou pior, nunca vão se aproximar ou apreender nada
dele? Tudo bem, tudo bem; a arte nunca foi feita para que
todos apreciassem, só os preparados para entendê-la
em profundidade, me responderiam os entusiastas da arte
contemporânea. Mas é inevitável dizer
que a beleza atraía algo de compreensível
a qualquer obra do “modelo antigo de arte”,
e que o binômio intelecção-beleza exclui
menos do que o questionamento (em qualquer nível)
puro.
No sentido
horário - Item dobrável de viajante (1916),
Fonte (1917) e Roda de bicicleta (1913)
Marcel Duchamp (Crédito da foto - TIANA CHINELLI)
Depois
de tantos parágrafos, tenho que me repetir para me
salvar: sou, também eu, um entusiasta das novas propostas.
Mas, de qualquer modo, é aí que está
o problema avant la lettre: a admissão da
nova arte só é possível com a aceitação
da morte da arte como ela era, e disso a nossa proposição
estaria incorreta: tudo pode vir a ser arte, exceto o que
já foi constituído como tal. E isso inclui
um rechaço para com os artesãos antigos -
com todo seu conhecimento adquirido a respeito da harmonia
e desarmonia dos elementos dos materiais do mundo - e a
exclusão da maior parte dos que poderiam ser transformados
a partir das questões levantadas. A opção
fica mesmo no suicídio e no mandar a conta artística
lá do limbo.
Se Hegel entreviu, nos seus famosos Cursos de estética,
a morte da arte como a filosofia e as áreas de conhecimento
queriam que ela fosse, isto é, propriedade do sensível,
é melhor que a matemos mesmo de uma vez. Assim, talvez
possamos mudar o nome e a existência desse negócio
tão falado e pouco sabido, ao qual damos o nome de
arte. Uma sugestão, enfim: que tal seria se a arte
virasse um ramo da filosofia (estética não!)
no qual pudéssemos questionar os objetos, fenômenos
e ações à luz de qualquer que fosse
nossa vontade? Alguém poderia até dizer que
Schopenhauer previra o conceito, lá no seu O
Mundo como vontade e representação. E
aí teríamos uma discussão epistemológica
mais fértil, com uma arte só próxima
de onde ela ultrapassa seu conceito básico de delírio
genial intuitivo para admitir campos de atuação
menos comprometidos, como o raciocínio puro.
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22/07/07
-
Olympia,
a fêmea-valise
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Ícaro Moreno Ramos
é jornalista, músico
e fotógrafo. Pós-graduando em História
da Cultura e da Arte pela UFMG, aprecia composições
alucinadas, artistas sagazes e poesia. Tímido, porém
astuto, esse devorador de livros é adepto das mais
diversas filosofias, porque Metafísica, Estética,
Lógica e boteco têm sempre o seu lugar. Escreve
todas as sextas-feiras na coluna Retalhos Culturais.
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