03/07/07
Uma raça mestiça e a morte de Ernesto (parte 2)

Continuando a discussão sobre identidade latino-americana semana passada, é importante notar que a constituição de uma dita “identidade” não obedece, necessariamente, a critérios fixos. Se percebermos discursos como o pan-africanismo ou o pan-arabismo, vemos a necessidade de um traço que una diferentes povos diante de um ideal. Há algo mais diverso do que o sentido de União Européia, que congrega alemães, franceses, poloneses e gregos, entre tantos outros, na figura do “cidadão europeu”?

É muito comum se ouvir no Brasil que “não somos latino-americanos”, pela simples razão de não termos o espanhol como língua-pátria. Ora, nada mais errôneo. Não seríamos “hispânicos”, termo muito utilizado nos EUA para aqueles que nascem do Rio Grande para baixo. O termo “latino” se refere à preponderância de idiomas de origem latina, como são o português e o espanhol. Mas também o francês é uma língua latina, sendo que o Haiti, francófono, está incluído entre as nações latino-americanas. Mas, sendo assim, Quebec, a parte francófona do Canadá, seria parte da América Latina?

Não, não seria e não o é. Então, se não é o idioma que faz a América Latina, por que somos “uma mesma raça mestiça, desde o México até o estreito de Magalhães”, como disse Che? A questão é, sobretudo, histórica: fazemos parte de uma colonização ibérica, católica, que nos deixou profundas marcas. Somos todos frutos da miscigenação entre os brancos colonizadores, os indígenas que já viviam aqui e os negros trazidos para trabalhar de forma escrava. E, em quase todos estes países, vemos a seguinte situação: uma elite branca, descendente dos antigos colonizadores, mantém seus interesses diante uma grande massa mestiça, ou cabocla, como podemos ver claramente no Brasil. Note-se aí que o Haiti, novamente, aparece como um aparte: não foi colonizado por país ibérico, nem tem uma presença tão grande de índios e brancos, mas é maciçamente de população negra.

A exploração dos recursos naturais e a ingerência das grandes potências também constroem o grande painel da identidade latino-americana. O que foi tirado de cobre, prata e ouro, para citar apenas algumas reservas minerais, por Espanha e Portugal, foi um dos grandes assaltos da Humanidade. Obviamente, às custas de muita repressão, morte e terror. Guerras como a do Paraguai, a criação do Uruguai num ponto estratégico do continente, as ditaduras militares sanguinárias: todos estes eventos, ocorridos entre os séculos XIX e XX, tiveram decisivo apoio da Inglaterra, no primeiro momento, e dos EUA no segundo. Os abusos deixaram marcas profundas no continente: a vergonhosa distribuição de renda (principalmente na terra brasilis), o déficit democrático observado nas nações latinas, a carência de um sentido de cidadania. A falta do reconhecimento do outro como igual.

Mas há um sentimento de pertencimento, mesmo que seja na luta. Apesar de vermos alguns de nossos vizinhos como adversários e outros com desconfiança, sabemos que habitamos um lugar em comum. Um mundo desigual, onde só não somos a maior escória da espécie humana porque, acreditamos, temos a África para utilizar como exemplo negativo. A reflexão acerca de Ernesto Guevara de la Serna mostra aqui sua força: Che é visto por nós, povos dominados e subdesenvolvidos, como aquele que lutou contra as forças do dominador. Com o ideal de fazer estas terras, maltratadas há mais de 500 anos, se tornarem um lugar minimamente decente, onde possamos ter a noção do que é ser “cidadão”. Dar vida aos povos latino-americanos.

Aprovem-se ou não os métodos utilizados pelo guerrilheiro argentino, é necessário reconhecer o simbolismo de suas ações e a força de seus ideais. Temos que parar de nos ver como diferentes, “porque falamos português e eles espanhol”. Estamos todos no mesmo barco, que pode ser chamado de Mercosul, Comunidade Sul-Americana de Nações, ou quaisquer outros grupos político-econômicos. Formamos uma identidade dentro da diversidade. Somos América Latina, de qualquer forma – e aquilo que poderia nos deixar envergonhados deve ser o motor para que busquemos nos libertar de nosso eterno berço esplêndido.

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Ivan Bomfim é jornalista, graduando em História e pós-graduando em Relações Internacionais. Busca compreender o mundo contemporâneo, mas sempre com um olho na História, afinal "o presente é o reflexo do passado". Fale com ele pelo email: ivanjornalista@yahoo.com.br

 

 
 

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