Sexta-feira - 25/05/07
Os santos e seus tortuosos caminhos

Sem lágrimas de sangue ou mágicas: doutora em Sociologia afirma que, desde João Paulo II, qualquer fiel pode se tornar beato sem milagre nenhum

Trajando um surrado macacão de trabalho, e com enorme lentidão, ele sobe as escadarias do prédio, em direção ao 302. Buscava, supostamente, terminar a montagem do armário, que começara no dia anterior. Podia sentir o cheiro de medo daquela virgem, receosa em ouvir novamente palavras obscenas, que haviam arrombado seus ouvidos - como um esporro - na noite anterior. Mas, antes mesmo que a mocinha frágil e indefesa pudesse gritar por socorro, ao abrir a porta, aquele homem magro, de pele clara e cabelos castanhos dá-lhe a primeira cadeirada na cabeça. A visão da moça se entorpece em forma de negros e amedrontadores vultos. Rapidamente, retoma a consciência, mas já estava amordaçada e amarrada por cordas. De todas as formas, a jovem, de 20 anos, tenta lutar contra aquilo que parecia inevitável - o estupro. Entre tapas e gritos mudos, ela resiste, bravamente, mas não sem antes receber outro batismo de sangue: 13 marcas vermelho-tinto espalhadas pelas costas e duas na genitália.

Os escritos acima poderiam ser de qualquer conto trágico de Nelson Rodrigues, mas, guardados os devidos requintes literários, trata-se de um fato, em suma real, ocorrido na cidade de Juiz de Fora (MG), em 1982. O sonho da católica fervorosa Isabel Cristina Mrad Campos - estudar medicina - era brutalmente desfeito, após defender bravamente sua castidade. O caso culminou com o processo de beatificação da devota junto a Igreja Católica, defendido, através dos “modelos de santidade” propostos pela Igreja, por intermédio do padre Geraldo Cifani, de Juiz de Fora, sendo julgada por martírio, uma vez que a mulher, leiga, derramou o próprio sangue para preservar sua pureza.

A “democracia” da santidade

A operação de milagres e ações sobrenaturais não são mais determinantes para os processos de beatificação, somente para a canonização. Esses tomaram novo rumo no pontificado do Papa João Paulo II, que passou a dar mais importância às práticas cotidianas de virtudes - tornando o cânon (lista oficial dos santos católicos) mais humano, uma vez que pessoas comuns passaram a fazer parte dessa lista -, ao invés de restringir esse quadro apenas aos membros da instituição, como freis, padres e bispos. “Assim, abrem-se possibilidades para pessoas comuns, e fora do ciclo europeu, serem reconhecidas oficialmente pelo vaticano como modelos de santidade. Podemos dizer que ocorreu certa ‘democratização’ da santidade”, explica a Doutora em Sociologia Maria Cristina Leite.

A presença de um mediador, como os santos, é um elemento sem o qual o catolicismo não existe, uma vez que é esse o norteador do comportamento dos devotos. A beatificação de Isabel, natural de Barbacena, faz parte de um dos dois casos analisados por Cristina Leite em sua tese de doutorado, “Santos da porta ao lado: os caminhos da santidade contemporânea católica” – indicada ao Prêmio Jorge Zahar 2007. O segundo é o caso da canonização do padre Eustáquio, holandês que viveu e morreu no Brasil em 1943, julgado por virtudes. No caso do julgamento por martírio, como o da estudante, o processo de beatificação pela Igreja Católica contemporânea não exige a execução de milagres por parte do santo, embora o de canonização exija ao menos um. Já no segundo caso, para a beatificação é necessário a existência de um milagre e, no mínimo, dois para canonização.

Os referidos casos apontam para certa evolução histórica, no que diz respeito à beatificação e canonização, que atualmente se dirigem para a desmagificação. Ou seja, os santos passam a ser valorizados por suas virtudes cotidianas, e não apenas pelas habilidades mágicas. Cristina Leite explica que, talvez, os grandes avanços científicos e o esclarecimento racional de diversos aspectos da vida humana, bem como a grande mobilidade religiosa e a reflexão diária sobre os diversos caminhos possíveis a serem escolhidos no decorrer da vida do indivíduo, tenham feito a Igreja Católica buscar métodos de aproximação junto aos seus fiéis, evitando revelar santos que choram sangue, mas, paradoxalmente, propondo a inversão daquele velho ditado popular que afirma: santo de casa não faz milagre.


Leia também

04/05/07
O Frankenstein da Vila

20/04/07
Diálogos imaginários de um alterego ensandecido

06/04/07
Manual prático de realismo e descrença

23/03/07
Belo dia de piscina



___________________________________
Nilmar Barcelos é uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa. Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz, freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com

 
 

colunas

[ + ]
Amenidades
[ + ]
Diz Tudo
[ + ]
Nota Independente

[ + ]
Perspectiva
[ + ]
Retalhos Culturais
[ + ]
Trejeitos

enquete

Ocupar as reitorias é certo de reivindicar os direitos estudantis?

Sim Não

 

Expediente::: Quem Somos::: Contato:::Política de Privacidade:::Patrocine nossa idéia
Copyright © 2007 Jornal O Binóculo On Line All rights reserved