Sexta-feira - 04/05/07
O Frankenstein da Vila

Retratando o cotidiano de forma política e apurada, numa vida composta de boemia e tragédias, Noel Rosa marcou sua época com ironia, inteligência, sinceridade e poesia

“Boa impressão nunca se tem/ Quando se encontra um certo alguém/ Que até parece um Frankenstein/ Mas, como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração/ Entre os feios é o primeiro da fila/ Todos reconhecem lá na Vila”. Foi através dessa canção que Wilson Batista, sambista negro e de origem humilde, tentou se autopromover, apelidando-o de “Frankenstein da Vila Isabel”. A intenção era, através disso, desmoralizar o oponente, que tinha a face desfigurada, com um queixo que mais parecia ausência, devido a uma fratura durante o complicado parto, com auxílio de fórceps. O bode expiatório da briga fora uma mulher, reza a lenda. O nome do ultrajado rapaz, já reconhecido na época como famoso sambista, era nada mais nada menos que Noel de Medeiros Rosa, o poeta responsável por transformar Vila Isabel (RJ) em reduto do samba.

O contexto de uma das maiores batalhas da música popular brasileira - que durou cerca de três anos e rendeu o LP de dez polegadas Polêmica - Noel Rosa X Wilson Batista (1956, Odeon) - era a cidade do Rio de Janeiro. A resposta de Noel veio através do samba Palpite infeliz: “Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do céu, que palpite infeliz/ Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira/ Oswaldo Cruz e matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila não quer abafar ninguém/ Só quer mostrar que faz samba também”. A música marcou não só a vida do jovem e oportunista Batista, mas de todas as gerações até os dias de hoje. “A gente tem sempre uma tendência saudosista, independente da época. Acho que a força e vitalidade da obra de um Noel Rosa são eternos, o que faz dele um clássico. Talvez as pessoas, inclusive os jovens, tenham começado a dar valor aos nossos clássicos, e isso é bom”, diz o antropólogo Luis Lourenço.

Nascido no dia 11 de dezembro de 1910, Rosa foi um dos primeiros brancos a subir nos morros cariocas para dialogar com a cultura musical ali efervescente – o samba Africano, trazido pelos baianos instalados nas casas das lendárias “tias” baianas (como Bebiana de Iansã, Carmem do Xibuca, Ciata, etc). Além do mais, foi precursor da modernização do samba tradicional e, talvez, representasse a metáfora perfeita da idéia de mestiçagem da cultura africana proposta pelo Estado Novo, desvinculando em certa medida o samba do seu ritmo de origem, o maxixe. Em suas canções, o “Poeta da Vila” passa a tratar o cotidiano de forma paradoxalmente irônica e poética, unindo morro e asfalto. Em contato com os ritmos musicais do Rio, como a modinha e o lundu, o samba de roda ganha novas características. Boêmios cariocas e malandros baianos, em diversas polêmicas, convivem e dão origem a diversas produções musicais.

Filho de Manoel de Medeiros e Marta de Azevedo Rosa - responsável direta pela carreira musical do filho, já que fora ela que o ensinara a tocar bandolim -, tinha o apelido de “queixinho” entre os colegas do Colégio São Bento, no qual estudava quando criança. Era o instrumento que compensava na sua baixa auto-estima, já que junto às canções tocadas pelo jovem nas rodas colegiais vinham o status e o prestígio. Letras como São coisas nossa e Onde está a honestidade? sintetizam o caráter politizado do cantor que, embora buscasse viver a vida intensamente e de forma bem humorada, parecia predestinado ao sofrimento. Após o complicado parto e o complexo do queixo (ou a ausência desse), o músico teria duras perdas: sua avó, que se suicidara enforcada em uma árvore no quintal da casa onde moravam, quando Noel ainda era criança e, anos mais tarde, o suicídio de seu pai, em 1935, quando Noel se encontrava em Belo Horizonte para tratar de sua tuberculose.

Na breve passagem pela capital mineira, não existiu tratamento médico que o segurasse. Fora a boemia a responsável direta pela formação artística de Noel, que logo no segundo dia em BH já se sentia a vontade com os malandros das alterosas. “Noel teve pouca ou nenhuma atuação na cena musical belo-horizontina. Apenas alguns contatos e visitas as rádios da cidade”, diz o músico e professor Marcelo Dolabela. Apesar disso, a experiência em terras mineiras deu origem a magistral carta em rima ao seu médico, por nome Graça Melo: “Já apresento melhoras/ Pois levanto muito cedo/ E deitar as nove horas/ Para mim é brinquedo/ A injeção me tortura/ E muito medo me mete/ Mas minha temperatura/ Não passa de trinta e sete! (...) Creio que fiz muito mal/ Em desprezar o cigarro/ Pois não há material/ Para o exame de escarro! (...)”. Cada vez mais o anti-herói contrariava o sonho de sua família, que queria vê-lo doutor, formado em medicina.

Era na vida noturna, com bebidas e mulheres, que Noel achava se encontrar, mesmo, muitas vezes, se perdendo, como ele mesmo bem definiu na música Feitio de oração: “Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora vou me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que por infelicidade/ O meu peito invade”. Além das infelicidades, angústias e desamores, eram as constantes doenças que minavam a vida do poeta, que volta para a sua cidade natal, muito debilitado fisicamente. No dia 4 de maio de 1937, aos 26 anos, uma das figuras mais marcantes do Brasil, aquele que tinha como espelho os bêbados, andarilhos e tudo aquilo que era repelido pela sociedade – criando um vasto e intenso recorte social, que em seu curto tempo de vida deu origem a mais de 200 sambas - agoniza em sua casa, em Vila Isabel, deixando um abismo que jamais será preenchido em seus admiradores.

Dica: Polêmica – Noel Rosa X Wilson Batista. Lp de dez polegadas lançado pela Odeon em 1956 e interpretado por Roberto Paiva e Francisco Egydio. Em ordem cronológica, contém as músicas Lenço no pescoço (Wilson Batista), Rapaz folgado (Noel Rosa), Mocinho da Vila (Wilson Batista), Palpite infeliz (Noel Rosa), Frankenstein (Wilson Batista), Feitiço da Vila (Noel Rosa e Vadico), Conversa fiada (Wilson Batista), João ninguém (Noel Rosa), Terra de cego (Wilson Batista). Boa degustação!

 


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Nilmar Barcelos é uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa. Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz, freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com

 
 

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