Sexta-feira -06/04/07

Manual prático de realismo e descrença
Em alto mar de sangue, o escritor pernambucano Marcelino Freire traz a tona reflexões sarcásticas sobre o descaso, a omissão e os vários ângulos da nossa guerra particular

É como se o cinema marginal, transubstanciado em sangue, escorresse lentamente em velhas e amareladas folhas de livros imaginários, só restando em nossas memórias as manchas e a crueza da vida – ou as migalhas desta. Um engodo se faz (ou se desfaz?) do caos constante das cidades grandes, em meio a carros, arranha-céus, dióxido de carbono e o descaso pessoal nosso de cada dia. Enfim, resultasse disso o reflexo de tudo aquilo que nunca assumiríamos para nós mesmos: a hipocrisia homicida da qual fazemos parte integrante, embora vivamos a fantasiá-la.

Pensando assim, chegamos à “simplória” receita do escritor pernambucano Marcelino Freire e seu livro Angu de Sangue (Ateliê Editorial, 144 págs.), que retrata em 17 contos algo que é peça integrante de todos nós: a violência urbana. Acrescentando quantidade infinda de sangue, descobrimos o quanto este prato típico do Brasil foi incorporado aos grandes centros urbanos, simbolizando tão bem o nosso cotidiano de contradições, que, de tão movediço e inconstante, nos traga, engole, dissolve-nos em uma massa indefinida de questões niilistas sem luz no fim do túnel, sem túnel, sem ser.

Linguagem que gera sensação de desespero, pressa, simulando o corre-corre das avenidas engarrafadas. Repetições e algumas gírias – criando um clima de realismo na obra – dão forma ao primeiro conto do livro, Muribeca, retratando as angústias de uma mãe de família que habita um lixão, ama-o e, por isso, sente-se aterrorizada com a possível chance de ser despejada desse. “Lixo, lixo serve pra tudo (...) É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pras crianças? O que é que eu vou dizer pras crianças? Que não tem mais brinquedo? (...) E o meu marido, o que vai fazer? (...) Vai perambular pela rua, roubar pra comer? (...) E o que eu vou cozinhar agora? Onde vou procurar tomate, alho, cebola? (...) Fale, fale. Explique o que é que a gente vai fazer da vida? O que a gente vai fazer da vida? (...) Vá, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou encontrar tanto remédio bom? E esparadrapo e band-aid e seringa? (...) Pr’onde vão os coitados desses urubus? A cachorra, o cachorro? Você precisa ver. Isso tudo aqui em festa. Os meninos, as meninas, naquele alvoroço, pulando em cima de arroz, feijão (...) Minha filha já vestiu um vestido de noiva, até aliança a gente encontrou aqui, num corpo É. Vem parar muito homem morto, muito criminoso. A gente já ta acostumado. Quase toda semana o camburão da polícia deixa seu lixo aqui, depositado” (pág. 23-25).

Embora não explicitado na obra, Muribeca é referente a um dos maiores aterros sanitários da América Latina, com 62 hectares utilizados e outros 85 desapropriados pelo governo do Estado de Pernambuco, onde crianças e adolescentes vivem em condições sub-humanas. Um soco na cara de quem lê as três páginas deste conto: dados reais imbricados de elementos ficcionais denunciam o óbvio de forma tão humana que beira o irônico, o absurdo, mesmo sendo este descaso tão presente na vida de qualquer brasileiro. Além disso, segundo lenda entre os índios peruanos, Muribeca é uma cidade perdida. Analogia perfeita ao conto de Marcelino, definindo de forma precisa o abandono e a indiferença a que estamos sujeitos como vítimas ou que protagonizamos como algozes.

“Não temos nenhuma educação. Meu Deus, morrem fora da escola as nossas crianças. Lá não, até nisso são cuidadosos e desenvolvidos. Estão na escola crianças que matam outras crianças. As mortes são psicológicas, nada reais. Assassinos, heróis de guerra, neuróticos por efeitos especiais” (pág. 121), provoca o autor no conto The End, que reconstrói a realidade ilusória e delirante do sonho americano e de todos os resultados decorrentes desta busca neurótica, armamentista, que cada vez mais se confunde com o hiper-realismo e todas as obsessões propagadas por Hollywood, como no caso do Colégio Columbine, no ano de 1999, quando os estudantes Eric Harris e Dylan Klebold entraram armados e mataram 12 estudantes e um professor, chocando a “tradicional” população norte-americana.

Entre um conto e outro, algumas imagens inseridas dão um toque único de sensibilidade à obra. Inicialmente, uma foto de grãos de milho verdíssimos que, nas páginas posteriores, ficam vermelhos como se imersos em sangue. Em outro momento, nos deparamos com um rosto, feito de angu, flutuando no mar de sangue formado pelos grãos. Quem assina o trabalho é Jobalo, artista plástico pernambucano, com direção artística da paulista Silvana Zandomeni, enriquecendo e complementando o tom poético que Marcelino esboça em alguns contos.

Em nenhum momento o autor se perde no vazio do mero panfletarismo. Consegue refletir sobre problemas tão marcantes de nossa cultura, abrindo um caminho de discussão sobre as mazelas sociais das quais convivemos cotidianamente e temos nos acostumado. O caso da menina, A cidade ácida, Filho do puto, Moça de família, Volte outro dia, Faz de conta que não foi Nada, são outros contos que vislumbram os antagonismos entre o assalto da violência e o amor banalizado, compondo este “manual prático de realismo e descrença”, permeado pela sã visão de alguém que optou por não florear uma realidade que apenas insensatos sonhadores acreditariam ter final feliz.

FREIRE, Marcelino. Angu de sangue. 1ª ed. Ateliê Editorial, São Paulo: 2000.

Leia também

23/03/07
Belo dia de piscina


___________________________________
Nilmar Barcelos é uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa. Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz, freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com

 
 

colunas

[ + ]
Amenidades
[ + ]
Diz Tudo
[ + ]
Nota Independente

[ + ]
Perspectiva
[ + ]
Retalhos Culturais
[ + ]
Trejeitos

enquete

Ocupar as reitorias é certo de reivindicar os direitos estudantis?

Sim Não

 

Expediente::: Quem Somos::: Contato:::Política de Privacidade:::Patrocine nossa idéia
Copyright © 2007 Jornal O Binóculo On Line All rights reserved