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01/06/07
Helvécio além do cinema
Essa entrevista foi realizada em
parceria com o jornalista Gustavo Lacerda
"O
telefone toca. Alô, é da casa do poeta? Claro, é
ele. Super nervoso, falo sobre o documentário que estou
realizando e pergunto se quer me dar um depoimento. Claro, ele
responde. É Só marcar. Não acreditei. Mais
fácil que imaginei."
Essa passagem foi retirada do livro O Cinema além das montanhas
(Coleção Aplauso - Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2005), uma biografia de Helvécio Ratton
escrita pelo crítico de cinema Pablo Villaça. Na
época, Helvécio, um cineasta em início de
careira, ligara para Carlos Drummond de Andrade para pedir um
depoimento.
O que se aproxima muito com o nosso caso. Gustavo pega o telefone
e liga para a Quimera (produtora de Ratton) sem nenhum compromisso.
Claro, ele deve ser um homem ocupado, com muito serviço
a fazer. E, como anos atrás, agora Helvécio em papel
invertido, o pedido também foi bem sucedido.
Nessa entrevista, Helvécio Luis Amorin Ratton, o cineasta
mais conhecido de Minas Gerais, fala sobre a ditadura do Chile,
governo Lula, futebol, e é claro... cinema.
Binoculo:
Como começou sua paixão pelo cinema?
Helvécio Ratton: Começou cedo, assistindo
a cinema e me interessando muito por isso. Me lembro quando era
bem pequeno, em Peçanha, uma cidade em que morei muito
tempo. Lá nessa cidade só tinha uma sala de cinema
e eu, com quatro, cinco anos, ficava olhando os cartazes dos filmes
louco querendo ver os infantis que passavam lá. Então,
desde pequeno tinha uma atração muito grande por
isso. Na adolescência continuei vendo muitos filmes, sempre
indo ao cinema. Essa era minha grande diversão, mesmo porque
nessa época, anos 60, 70, não tinha televisão.
B:
Mas desde essa época você já pensava em fazer
cinema?
HR: O cinema que dominava o imaginário de todo mundo,
como até hoje acontece, era o norte-americano. E aquilo
era muito distante da nossa realidade. Mas, me lembro de já
com meus 15, 16 anos, vendo os filmes do Cinema Novo brasileiro
no final dos anos 60. O cinema brasileiro parecia um rascunho
daquele outro cinema. Era mais livre, mais barato, obviamente,
mas que parecia possível de ser feito. E eu tinha muita
vontade de fazer. Tinha um sentimento artístico. Gostava
muito de escrever, de ir ao cinema. E o cinema me emocionava muito.
Então, quando comecei a ver o cinema brasileiro que tinha
suas imperfeições, me pareceu algo acessível,
próximo. Mas por minha participação política
isso foi adiado.
B:
Pois é, fale um pouco da passagem da política na
sua vida.
HR: Na verdade, a política influencia minha vida.
Eu entrei na universidade em um ano sumamente politizado, que
foi 1968. Um ano que tinha uma mobilização dos jovens
no mundo inteiro. Mas era também um momento em que a juventude
estava muito politizada, participando muito e achando que poderia
interferir na história. Como de fato pôde, né?
Então, isso me levou a pensar muito em política
também. E o próprio cinema brasileiro que se fazia
nesse momento, o Cinema Novo, era também muito influenciado
politicamente. Era uma arma de combate, em que se expunham idéias,
e que também achava que poderia mudar o mundo. Na verdade,
essas duas coisas se cruzaram na minha vida. E, pelo momento político
brasileiro que era extremamente duro, acabei tendo de sair da
universidade, sair de Belo Horizonte escondido e até mesmo
do país, indo para o Chile. Então, essa minha vontade
de fazer arte ficou meio encoberta por causa dessa situação.
B:
Então, Helvécio, saindo um pouquinho do cinema,
mas ainda lá no Chile, sabemos que você passou por
um momento delicado na ditadura chilena. Conta pra gente como
foi.
HR: (silêncio)... A ditadura no Chile. (silêncio)
Teve o golpe no Brasil quando eu tinha 14 anos, em 1964, quer
dizer, eu não vi muito a repressão. Depois eu vivi
a repressão aqui com o movimento estudantil, mas foi de
qualquer maneira muito mais leve do que o quê aconteceu
no golpe militar do Chile. Foi extremamente sangrento, bombardearam
palácio, mataram só nos primeiros dias, pelo menos,
3.000 pessoas. Um massacre impiedoso. E eu que pensava que as
forças de esquerda teriam condições de resistir.
Mas de repente virou uma brincadeira, você resistir contra
um exército profissional disposto a matar, passar por cima.
Com certeza os dias do golpe foram terríveis. Escutava
à noite inteira barulho de metralhadora, de helicóptero
que vinha buscar feridos. Foi um clima muito tenso, muito pesado.
B:
E como a política influencia no seu trabalho?
HR: Quando eu comecei a fazer cinema essa onda política
era muito forte. Então continuou essa vontade de fazer
política, só que por outros meios que não
fossem a militância. Só mais tarde é que separei
um pouco e comecei a pensar no cinema enquanto diversão,
enquanto entretenimento. Também um cinema de idéias,
mas não tão instrumentalizado quanto um cinema político.
B:
Helvécio, a gente estava falando em como a arte pode passar
uma idéia, uma ideologia, e, até mesmo, formar a
população. O entretenimento é muito criticado
por alguns. Por outro lado, alguns pesquisadores acham que é
realmente essa a função do cinema, entreter e divertir.
Qual a sua opinião sobre isso?
HR: O cinema nasceu nas feiras de diversões, nasceu
como entretenimento. As pessoas vão ao cinema durante duas
horas para se divertir. Eu, particularmente, acho que a função
maior do cinema é a diversão. Mas isso não
quer dizer que junto com o entretenimento não possa vir
idéias. O bacana de um filme é quando você
sai do cinema e o filme não acabou. Esses filmes que você
sai do cinema e deleta completamente não valem nada. É
igual vinho ruim que você toma e quando saiu da boca já
acabou, não deixou lembrança nenhuma. Mas não
acho que os filmes mudam o mundo. O que muda o mundo são
as pessoas, a ação das pessoas. Os filmes podem
de alguma forma trazer idéias, provocar conversas, provocações.
B:
Como você avalia as leis de incentivo?
HR: O cinema brasileiro ainda existe por que tem a lei
do audiovisual. Na verdade, o filme brasileiro não tem
mercado que garanta a continuidade da produção.
Todas as nossas produções estão centradas,
basicamente, na lei do audiovisual e secundariamente na Lei Rouanet,
além das leis estaduais. Mas as leis de cultura, no Brasil,
são uma coisa complicada. Por um lado elas estimulam a
produção e, por outro, elas criam falsos mecenas.
Quando uma empresa entra apoiando um filme, ela está usando
dinheiro público para promover o nome dela. Mas as empresas
começam a evitar certos tipos de filmes, por não
quererem associar a marca delas a eles. Isso é algo extremamente
complicado. Mas temos uma lei que nos permite fazer cinema. Bom,
pelo menos por mais uns 10 anos.
B:
Infelizmente, a questão da educação no Brasil
é um problema. Nós temos uma porcentagem da população
ainda analfabeta. Você acha que o brasileiro está
pronto para sentar na poltrona de um cinema e refletir de forma
construtiva?
HR: Essa pergunta é muito elaborada. Qualquer pessoa
está pronta para sentar e ver um filme, mas a reação
que vai bater em um espectador é diferente em outro. Como
dizia Shakespeare, o que é bacana pra mim em uma obra de
cinema é que ela consiga emocionar o rei e o bêbado
que assistir. Acho que todas as platéias interessam. Mas
a gente vive um problema sério no Brasil, porque, além
dos reais analfabetos, tem os analfabetos funcionais, ou seja,
pessoas que sabem ler, mas não conseguem entender. Até
que ponto a pessoa é capaz de entender todas as sutilezas
de um filme? Vai depender de cada um. E isso realmente é
um problema. Mas não gosto muito de filmes que são
indecifráveis.
B:
Mas você não acha que seria interessante se o cinema
no Brasil fosse usado como instrumento de educação?
HR: É exatamente aí que eu queria chegar.
Não acho que o cinema no Brasil seja usado como instrumento
de educação. Aliás, sinto até muita
falta disso. Nós produzimos em torno de 40 filmes brasileiros
por ano e eles dizem muito respeito ao Brasil. Filmes que são
a nossa cara e por isso mesmo tantas vezes são tão
rejeitados. Ninguém gosta de ver o próprio defeito.
No entanto, quando os brasileiros têm acesso aos filmes
brasileiros eles gostam muito. Mas nós vivemos em um país
extremante complicado e o problema desse cara que você falou
que vai sentar na cadeira é que ele não tem dinheiro
para essa cadeira. Quer dizer, o cinema é arte cara em
função da nossa renda baixa. Não é
que seja caro, mas, para um cara que ganha R$400, vai gastar R$15
no cinema? Então a gente fica numa contradição
enorme, porque temos filmes significativos, filmes que poderiam
contribuir para esse povo, e no entanto não são
vistos por eles. A não ser quando os filmes vão
para a televisão, o que é raro. Outro problema,
a gente não tem salas populares. Há problemas graves.
E acho que poderia, por exemplo, incluir cinema como parte do
currículo, ter cinema na escola.
B:
O que você acha da entrada da Globo Filmes no mercado?
HR: É uma coisa que fico muito preocupado. Não
fico preocupado com a Globo estar no mercado. Se a Globo quer
entrar, que bom. Mas, por exemplo "Se eu fosse você",
que tem um linguagem de televisão, atores de televisão,
e esse filme consegue levar público brasileiro ao cinema.
Daí a gente cai numa contradição que dá
um desânimo profundo. Até que ponto a televisão
consegue dominar esse mercado do audiovisual completamente para
as pessoas só estabelecerem relação com essa
linguagem? Então, isso é desanimador.
B:
Alguns cineastas afirmam que a rigidez, dentro dos sets de
filmagem, colabora para uma melhor produção. Outros
preferem deixar a produção, como um todo, mais à
vontade. Como é o seu jeito de trabalhar?
HR: Eu gosto de preparar muito bem os meus filmes e, obviamente,
o cinema é uma arte coletiva, não uma arte individual.
Você precisa do fotógrafo, diretor de arte, músico,
são trabalhos que se complementam. Eu, no geral, gosto
de chamar craques para trabalhar comigo. Pessoas que entendem
realmente. Mas existe a linha do filme que é dada por mim,
o diretor, e não há outra pessoa que possa dar isto.
A equipe não faz o filme sozinha e a única pessoa
em uma equipe de cinema que tem uma visão global do filme
é o diretor. O fotógrafo vai ver pela ótica
da câmera, da luz; o diretor de arte vai ver pelo cenário,
roupas, juntamente com o figurinista. Então, é preciso
que o diretor dê um tom geral a isso. Também não
gosto de um show-off daquele profissional. Quando você repara
demais no figurino do filme tem alguma coisa errada. O figurino,
por exemplo, não é uma coisa para ser percebida,
ele deve estar diluído no filme, assim como música,
montagem. Eles devem sumir no conjunto da obra e o responsável
por isso é, basicamente, o diretor. Trabalhar com equipe
é uma coisa complexa. Mas cinema é necessário
trabalhar em equipe.
B:
Como você analisa a crítica de cinema feita no Brasil?
HR: Muito ruim. Há muito pouco espaço nos
jornais. Há mais tempo a crítica já cumpriu
um papel de peso no cinema, quando ela não dizia ao espectador
somente para ver ou não um filme. Esse é um papel
triste. Eu acho que a função do crítico é
deixar que o público se interesse pelo filme e fazer uma
mediação, trazer elementos que um espectador, digamos,
comum, não veria no filme. Dizer ao público para
ver ou não o filme é reduzir uma produção
que é uma obra muito mais complexa do que isso. A crítica
hoje é muito mal preparada, mal aparelhada para dialogar
com os filmes e são raros os críticos que conseguem
fazer isso.
B:
E o Helvécio fora dos sets de filmagens? Atrás das
câmeras?
HR: Eu leio muito, gosto de viver em família e preservo
minha imagem. As pessoas te procuram muito, você vira, de
certa forma, uma referência na área e eu gosto de
me proteger um pouco. Acho que até para eu ter meu tempo
particular. Agora, eu gosto extremamente de ler também.
Não consigo não estar lendo o tempo inteiro. Acho
um grande barato. Viajo mesmo com meus livros. E estou sempre
vendo minhas coisas em DVD. Minha vida em particular não
é diferente da da maior parte dos seres vivos. Gosto de
estar em família, ficar com minha filha.
B:
E sobre a paixão do brasileiro, o futebol, se interessa?
HR: Adoro futebol. Vejo os jogos, mas estou desencantado
com esse marketing todo. Os jogadores não são mais
jogadores, são produtos de mercado. Aí, você
começa a perceber que o importante para eles é o
comercial da Nike, não a partida. Eles só jogam
bem em comercial. Aquela jogada fabulosa é só no
comercial, porque no campo não estou vendo nada disso.
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João Paulo Teixeira
é jornalista, continuísta, admirador e estudioso
de cinema, pós-graduando em “História da Cultura
e Arte”, não necessariamente nessa ordem. Já
participou de 20 filmes, sendo 19 curtas (18 como continuísta
e um como diretor) e um longa como assistente de figurino e produção.
Acredita que a continuidade é responsável direta
pelo olhar mais crítico para o fazer e analisar obras cinematográficas.
Além disso, é colaborador da peça Atrás
dos Olhos das Meninas sérias, com estréia em março.
É redator da coluna TRAVELLING no site Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br).
Escreve todas as sextas-feiras. E-mail: jpteixeiras@gmail.com
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