08/06/07
A dualidade entre o sargento e a pimenta

Nos seus quarenta anos, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band ainda atua como divisor de águas. Seu legado deve permanecer unicamente, porém, no âmbito do desenvolvimento da canção enquanto formato próprio da indústria da cultura.

Não como a madeleine proustiana, que no célebre episódio do chá na casa da princesa de Guermantes no Em busca do tempo perdido esfria após a lembrança de infância do autor, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles continua cheirando como novo. Todo aparato pelo qual se ajusta o efeito simbólico que tal obra de arte nos afeta é realmente de uma eficiência absurda. O efeito é, certamente, contrário ao que acontece à madeleine: tem-se a insistente impressão de uma perenidade indubitável, advinda de locais muito profundos do nosso senso estético, como uma tradição milenar de juízo de gosto, de onde ninguém pode ultrapassar a barreira que se impõe.

E esse “cheiro” permanece mesmo depois da separação e morte de metade da banda. O álbum beatle de 1º de junho de 1967, na verdade, é considerado a indicação limítrofe, o ícone do estabelecimento de uma geração contracultural que inevitavelmente viu seu movimento se tornar um dos mais altos padrões de cultura – ranço básico das ideologias que visam desvelar ideologias – dos tempos que se passaram depois deles. O muito comentado gosto apimentado do álbum, aliado a toda mística que circulava invariavelmente o entorno do mundo beatle, especialmente no momento conturbado que passavam os quatro de Liverpool depois de declarações ambíguas de Lennon sobre Cristo, ampliaram isso.

Longe dos palcos, os fab four, com efeito, caminharam na medida contrária da aura benjaminiana: passaram a vislumbrar o status de arte no exato momento (coincidências ou não) em que deixaram a atuação presencial, o show: reprodução técnica artística em detrimento dos espetáculos glamourosos em meio aos gritos irracionalizados dos fãs. Também nesse sentido o quarteto é o próprio totem cujo estabelecimento faz circular a indústria da cultura.

Toda a maestria de George Harrison nas cítaras e guitarras, o baixo “na cara” do “morto” Paul McCartney (e toda a criatividade relacionada à simbologia do seu suposto falecimento), as letras impregnadas de uma temática nova, guiadas pelo ácido lisérgico e pelas incursões de Lennon na literatura moderna, além da inventividade sem virtuosismos desnecessários de Ringo são elementos já citados e consagrados em vários textos ao longo dos quarenta anos de nascimento do álbum. Apesar de todo esse porte e, claro, de toda sua qualidade, Sgt. Pepper’s não vai além do que os Beatles já faziam em termos de tecnologia cancional, quer dizer, a mudança pela qual passou o quarteto institui unicamente um avanço nas experiências retratadas pelas letras, e não no conjunto sincrético instaurador do pós-modernismo artístico (local onde o disco parece se posicionar em relação a toda produção artística depois dele).

E tal experiência poética está relacionada inequivocamente com o uso do ácido lisérgico, que o senhor McCa propriamente entrega na frase: “admito que existem perigos em tomá-lo, mas eu tomei com um propósito deliberado em mente: encontrar a resposta para o que é a vida”. Que se explique: do alto posto em que se posiciona, Sgt. Pepper’s não intenciona romper bruscamente com a dádiva própria com a qual os Beatles se vinculam, que é o melos delicado e fundamentado em bases de sensibilidade pouco extravagante. Isso é e acaba não sendo uma crítica ao disco, posto que não há cabimento no conceito “extravagância” num disco tão renovador. Certo?

Errado. Pepper’s tem todas as qualidades que seus críticos apregoam. E por isso não é de se estranhar coincidirem todas as opiniões; de músicos-especialistas a leigos, simples fruidores. Mas os adjetivos instaurador e renovador cujo rótulo pregaram na cabeça do disco há algum tempo emaranham o sentido correto dessa aplicação. O problema está no centro da própria forma escolhida para o arranjamento das suas partes, as canções (e George Martin saberá muito bem disso), pois delas não se passa, nem por decreto. Nesse sentido, o “disco conceitual” Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band é um interessante, relevante, criativo e fundamental álbum para o entendimento do mundo musical da segunda metade do século XX. Mas não da música em si.

Sgt. Pepper’s é, na verdade, cindido em duas partes: uma é aquela que abriga a liberdade poética dos sons, e outra, muito cara aos Beatles – e em conseqüência a toda a indústria pop subseqüente –, é a tecnologia da canção de massa. Respectivamente, uma abriga a anedota que revela o ponto máximo da inventividade dos fab four - o mi final de A day in the life: segundo consta, George Martin teria tido a idéia brilhante dos glissandos a esmo. A outra parte todos conhecem e assobiam; a melodia simples e redonda que caracteriza todos os refrões e estribilhos. As duas, por vezes, parecem viver separadas nas obras do quarteto. O que não configura seu problema, mas sua solução: paradoxalmente, é daí que vem toda a força do disco – de sua explícita não-encarnação de uma dialética verdadeira entre as partes.

 

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Ícaro Moreno Ramos é jornalista, músico e fotógrafo. Pós-graduando em História da Cultura e da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais, aprecia composições alucinadas, artistas sagazes e poesia. Tímido, porém astuto, esse devorador de livros é adepto das mais diversas filosofias, porque Metafísica, Estética, Lógica e boteco têm sempre o seu lugar. Escreve todas as sextas-feiras na coluna Retalhos Culturais. E-mail:icaromoreno@gmail.com

 
 

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