20/05/07
A transfiguração do discurso
A nova música é espontaneamente posta no absoluto esquecimento. Ela é a verdadeira mensagem dentro da garrafa (Adorno, Filosofia da nova música).

De onde brotam “mil grotescas dissonâncias”, ainda jaz uma esfinge adormecida – sem que isso tenha explicação: a música emancipatória do início do século passado. Há nela, certamente, algo de digressivo em relação ao todo estético do efetivo senso avant-garde das primeiras revoluções dos novecentos. E, por pouco, já não nos basta que tal digressão entre num sistema de trocas hermético e conciso para consigo mesma (o que resultaria em nada, ou no desdém infalível das nossas atuais carências frente ao inominável não-idêntico).

Eis que a problemática então se põe: quais os nossos motivos para um rechaço veemente em relação a tal objeto estético, a saber, a música pós-tonal de tempos já seculares? A arte que rejeite (ou atualize) nossas proposições de gosto, nossos juízos, deve permanecer à parte da nossa perspectiva, do nosso ponto de vista? O que há com as edificações musicais construídas sobre a cabeça de nossos costumes, traçando em milhas a distância intocável do nosso limite sensível, humano?

“Edificações musicais” exatamente onde aquela tênue linha digressiva rompe pela tangente a cadeia vanguardista desse mesmo tempo. Exatamente onde a abertura ao extra-semântico e ao formalismo deslocou da música o seu tradicional sistema discursivo, ou (num mínimo paralelo) da pintura o seu caráter figurativo - mas unicamente num pequeno paralelo, pois a arte pictórica tem os seus problemas intrínsecos (dentre os quais a preocupação com o decorativismo). Ou em termos explícitos: qual o motivo da fantástica distorção pela qual passamos, diante da assimilação enérgica dos (antes) transgressores Picasso, Kafka, Brecht (etc.) em detrimento dos seus contemporâneos Schönberg, Varèse, Ives (etc.)?

Se por mero descaso do descaso, o fabuloso monstro da música moderna ainda não se ergueu a um posto às vistas do nosso sensível , é também porque teve a preocupação de armar uma trincheira da qual não quis sair desde o dia do seu nascimento. E à medida que nosso senso de preservação foge do inútil, recorrendo desesperadamente (e, até certo ponto, inversamente) às nossas técnicas humanas de salvação da sobrevivência, e atualmente da própria Terra, tão mais indigesta vai ficando essa atuação musical – e a ofensa ao nosso senso de recaimento, segurança, vai irremediavelmente estabelecendo o seu primeiro e último lugar.

Só não se sabe como, nesse caso, nossa segurança finca o pé num recurso técnico já ultrapassado, e onde fica posicionado o paradoxo que cria a ironia. Parece que depois de uma grande sedimentação histórica, o tonalismo parece dar sentido às coisas, quando poderia ser certo imaginar, em um pequeno momento como Wittgenstein, para quem “o sentido do mundo deve permanecer fora do mundo. [Pois] No mundo cada coisa é como é e sucede: nele não existem valores e, se existisse, não teriam valor”.

Desse modo, o coro dos contrários, que acredita sem fatalismos, só pode fincar uma bandeira já velha, que, ao mesmo tempo, pouco ou nunca foi utilizada: a da esperança na mudança como ponto de alcance – não da verdade, mas de uma utopia dinâmica. Desde assim, nesse ínterim, Schönberg já haveria morrido com toda sua trupe, bem envelhecido, sem nunca ter sido experimentado. Algo alegoricamente como seu pierrô, que (na transcriação de Augusto de Campos) acaba violando “o crânio calvo” do velho Cassandro, provavelmente uma metáfora dos mais avisados, “com grotescas dissonâncias” - já que quem é desavisado não faz sentido. E há muito que o inútil passa ao largo.

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Ícaro Moreno Ramos é jornalista, músico e fotógrafo. Pós-graduando em História da Cultura e da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais, aprecia composições alucinadas, artistas sagazes e poesia. Tímido, porém astuto, esse devorador de livros é adepto das mais diversas filosofias, porque Metafísica, Estética, Lógica e boteco têm sempre o seu lugar. Escreve todas as sextas-feiras na coluna Retalhos Culturais. E-mail:icaromoreno@gmail.com

 
 

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