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Nalgumas velas entre a baía de todos os santos e o mediterrâneo, Mar de Sophia, último disco de Maria Bethânia, se perde; e (por quê não?) se salva no próprio paradoxo da correnteza de sua escolha poética. O
mar azul e branco e as luzidias Há severamente em Maria Bethânia uma preocupação rigorosa com as raízes do nosso sítio frágil. A verdade processada pelos dutos de sua sensibilidade parece sempre nos reconduzir a algum lugar muito próximo da magia, lugar-estado de complacência com uma natureza sempre ambiente e, ao mesmo tempo, elemento ativo. Em Mar de Sophia (2006), seu último álbum (lançado em paralelo a Pirata, mas sem qualquer ligação processual-criativa com ele), essas figurações típicas de sua poética atuam em conjunto com uma substância basilar de uma poeta moderna: o mar transcendente da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. O que explicita uma tentativa de junção estética, numa homenagem que coloca como protagonista a própria poesia breyneriana. Ou colocaria. Não obstante o nome do disco coloque termo a tal homenagem, e Bethânia experimente uma aproximação explícita com um dos objetos poéticos diletos da poeta, existe um obstáculo que Mar de Sophia não transpõe: a geografia. É que a eficácia temática do álbum parece ser inversamente proporcional à convergência necessária dos seus elementos sensíveis, das suas nuances sensoriais. Ora, isso vem unicamente do fato esquecido de que a poesia de Sophia é diletante dos ares mediterrâneos. E a experiência baiana inerente à cantora de Santo Amaro impregna marcadamente o eu-lírico presente nas faixas de seu álbum, como se quisesse destacar na lírica notadamente clássica da portuguesa um sotaque menos peninsular, mais africanizado. Apesar de o mar ser local de concentração da experiência vivida, ele só nos serve como vinculação condutível, como um lugar inadequado para o estacionamento existencial. Sophia de Mello e sua tonalidade européia chegam a ser - poderíamos até pensar - o contraste da obra como um todo, cavando no centro da expressão musical de Bethânia uma vala de tons mais amenos e matizados. A faixa mais representativa para esse caso seria o pout-pourri Marinheiro Só (Caetano Veloso) e O Marujo Português (Linhares Barbosa / Arthur Ribeiro), que destaca em único exemplo o mais típico dos ritmos portugueses: o fado - não ficando, obviamente, sem as marcas fortes cravadas pela estilística mal-acabada dos contracantos do coral de homens que acompanha Bethânia com a frase "marinheiro só" (não há dúvidas: o efeito pitoresco que traz à imaginação um bando de marujos a dançar é deveras estranho). Por tal feito, a única faixa que tem em si uma proximidade explícita da estética breyneriana, é a mais infeliz do disco (estando a salvo, claro, as duas belas músicas em separado). Em continuidade, o disco mostra, logo nos primeiros arranjos e temas, a tendência africana. Canto de oxum e Iemanjá, rainha do mar abrem, com percussões etéreas e figurativas (há uma preocupação clara com uma simbolização sonora do ambiente praieiro e marítimo, de onde podemos destacar o quase infalível Naná Vasconcelos), a seqüência; Beira mar, composição de Roberto Mendes e Capinan, dá a melhor medida de Mar de Sophia, colocando no centro da ação um sujeito extremamente passionalizado em sua relação com o mar, que nesse momento já não é mais de Sophia: vaga no interior desse agente quase afro-carnavalesco que faz a mais pertinente pergunta, logo se respondendo: "Dentro do mar tem rio/ dentro de mim tem o quê? /Vento, raio, trovão/ as águas do meu querer". Em termos de coesão, o álbum parece ir bem até a quinta faixa, sempre muito bem amparado pela já citada percussão figurativa (com a exceção já comentada de Marinheiro só e O marujo português, terceira faixa). A sensação e a atitude são expansivas, de tímbrica clara e pontiaguda, entre cordas de aço e peles de pandeiros. Até recursos pouco usuais da própria Bethânia, como falsetes, vão sendo apresentados; Sophia já não se encontra em suas praias iniciais. Outra cisão atravessa o disco na sexta faixa (a bela canção metafórica Grão de mar, de Márcio Arantes e Chico César), iniciando uma divergência que irá gradualmente avariar a percepção de unidade que sempre pareceu permear a intencionalidade do disco. A partir daqui, já não se saberá bem a quais possibilidades intuitivas Bethânia tentará recorrer. Arnaldo Antunes e samba-enredo tentam conviver, unidos pela linda voz da baiana, em meio aos poemas de Drummond (Quadrinha: O Mundo é Grande) e aos acordes impressionistas jobinianos (As praias desertas). A metáfora poética do eu perdido "nos longes onde andou, sem achar o mar que semeou", cabe como uma luva à perdição em que se encontra a seqüencialidade conceitual perceptível aprioristicamente, quando Mar de Sophia poderia ser algo alinhavado intencionalmente pelas costuras portuguesas. O sujeito de Grão de mar torna-se, assim, um sujeito que vive perdido entre versos, criando um meio quase antropofágico (metalingüístico) de reviver a experiência nostálgica (sua relação com o "mar semeado"); a experiência se funda no sacrifício, fazendo da expressão o último local de vivência (alegórica) do válido. O refrão "e o mar ficou lá no sertão, e o meu sertão em nenhum lugar" é o melhor exemplo, neste caso. Mas essa dissidência geográfica acaba onde possamos reencontrar Sophia de Mello Breyner numa longa correnteza concebida pela condução universal e universalizante das águas. Como dissemos, não sendo posto de chegada, os oceanos são as possibilidades de encontros com o genérico e o específico, com o incalculável e com o humano; são mesmo o intervalo entre o local firme da vida terrestre. Por meio desse viés, a poesia marítima de Sophia nunca finca uma bandeira: é propriamente fluxo, onde não se saberá nunca se há ou não uma experiência concreta no espaço-tempo. O sujeito poético, muitas vezes perdido no disco de Bethânia, acaba por se reencontrar consigo mesmo em algum lugar, qualquer que seja ele. É a salvação vinda pela correnteza - uma salvação que pode ou não chegar. A experiência de criação de Mar de Sophia nos mostra que, mesmo num disco muito bem trabalhado - com toda a fineza estética presente nas recitações de Bethânia, nos pianos de João Carlos Assis Brasil e Antonio Adolfo e nas composições de vários bons autores -, o perigo do deslize conceitual sempre se apresenta. Nesse caso específico, tudo por causa de um título, que poderia ser muito bem o que a mesma Bethânia tem usado na sua turnê: "Dentro do mar tem rio". Muito mais cabível. Maria
Bethânia. Mar de Sophia. Biscoito fino, Brasil, 2006.
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