Terça-feira -20/03/07
APERITIVOS PSICANALÍTICOS SOBRE A MULHER E O FEMININO – Parte 2

Conforme dito no artigo anterior, daremos continuação aos “aperitivos psicanalíticos sobre a mulher e o feminino”. Nesta parte dois, a nossa intenção é discutirmos a dimensão social que envolve a mulher e o feminino para, em um outro momento, tecermos comentários mais “subjetivos” sobre a dimensão do feminino.

É patente o desenvolvimento da mulher na sociedade contemporânea. Progressos no campo profissional, educacional e social são visíveis quando se trata de países mais desenvolvidos economicamente e em estratos sociais mais elevados. Não obstante a tantos avanços nestes termos, uma posição de inferioridade no que tange à mulher é perceptível em quase todos os setores sociais.

No setor educacional, as mulheres brasileiras possuem acesso aos três níveis de educação em uma porcentagem maior que os homens. Os dados mais recentes do IBGE apontam para 39,9% dos postos de mercado de trabalho pertencentes às mulheres. Do mesmo modo, 22,9% das famílias brasileiras são dirigidas por mulheres. Entretanto, no campo profissional, continua uma disparidade entre o salário dos homens e das mulheres, em certos campos profissionais.

A violência contra a mulher tem aumentado, sobretudo o incesto e o abuso sexual. Os estudos norte-americanos estimam que 10% da população feminina já tenha sido vítima de crimes domésticos, tais como abuso sexual, espancamento, agressão física ou verbal. Nancy Pereira nos informa que 52% das trabalhadoras dos grandes centros brasileiros já foram assediadas sexualmente no local de trabalho; 1,8% das brasileiras em idade fértil já sofreu seqüelas de aborto, sendo que, segundo estimativas, no Brasil, o aborto interrompe 31 de cada 100 gestações; uma avaliação preliminar aponta para 4 mortes de mulheres por dia no Brasil em abortos clandestinos e 15 mil por ano na América Latina.

Para historiadores como Magareth Rago, as bases da situação atual encontram sua justificativa em uma perspectiva histórica. Com a saída das mulheres do lar, buscando novos espaços de atuação, sobretudo na forma operária, a classe detentora do poder, no caso os homens, começou a criar um novo modelo imaginário de família na qual os hábitos moralizados, costumes regrados e uma nova organização familiar passaram a ser cultuados. A saída das mulheres em direção à fábrica não foi uma escolha feminina. Foi o contexto sócio-econômico vigente que as empurrou em direção ao mundo do trabalho assalariado. O novo modelo de feminilidade adotado baseia-se assim na tríade esposa-dona de casa-mãe de família que atribui à mulher a preocupação em criar os futuros trabalhadores que passariam a se constituir como o braço forte da nação, baseado em um nacionalismo exarcebado promovido pela direita dominante.

Este modelo novo, que passa a ser construído a partir da segunda metade do século XIX, mostra um discurso diferenciado, onde o percurso semântico produz a narrativa da mulher como a Rainha do Lar, como a guardiã da casa. A nova mãe torna-se assim como responsável pelo equilíbrio dentro do lar e o mito do amor materno passa a assumir um lugar cada vez maior na configuração do espaço cultural/familiar brasileiro. A virgem Maria é tida como o modelo da mãe que sacrifica tudo pelo filho, inclusive sua sexualidade. Ela é a mãe-mulher assexuada, purificada e enclausurada no lar. Até 1965, com as leis sobre os regimes matrimoniais e de 1970 sobre o pátrio poder, a condição jurídica da mulher era de inferioridade. O marido era o chefe da família e a mulher casada era a ele submissa integralmente.

Na década de 60 as adolescentes são tomadas por aspirações modernas, com uma tentativa de redefinição das identidades sexuais influenciada pela mobilidade social e espacial e ainda pelo processo de industrialização pelo qual o país passava. Neste mesmo ritmo, a década de 70 viu a mulher assumir a posição de indivíduo, o que Jeni Vaistman assegura como um processo alcançado devido à noção moderna de igualdade que apregoava a igualdade e liberdade entre as pessoas.

Sendo os anos 70 como um período de novos movimentos sociais, com fragmentação social, contestação derivada de um autoritarismo político, os anos 80 surgem como um período de redemocratização e a cultura marcada pela heterogeneidade de manifestações. Neste cenário, as mulheres inauguram um tipo de relação baseada na flexibilidade e negociação de papéis, com a afirmação da diferença, o que passa a determinar os rumos do casamento como uma instituição fundada com base no discurso do amor moderno. No campo social, as condições de trabalho e de vida foram modificadas: jornada de 44 horas de trabalho por semana; ampliação da licença-maternidade e criação da licença-paternidade; reconhecimento de liderança da família para as mulheres; diferença na idade de aposentadoria entre mulheres e homens, dentre outros.

A década de 90 viu surgir uma fragmentação de papéis e identidades. Nesta época, sustenta Vaistman, “o sentimento de fragmentação da identidade vinculado à maternidade foi marca distintiva das mulheres desta geração”. As conquistas sociais, políticas, econômicas e afetivas promovem, até certo ponto, a autonomia e a igualdade por parte destas mulheres, trazendo efeitos sobre o tempo e a jornada dupla de trabalho. Neste tempo, a concepção de relação fundada com base no amor moderno perde sua força: A concepção de amor e de casamento não se sustenta na noção romântica de individualidade singular, de eternidade, como aquela que caracteriza o amor moderno; pelo contrário, é uma concepção que reconhece a fragmentação, a efemeridade, a heterogeneidade, o que a caracteriza como parte de uma sensibilidade pós-moderna.

A história da mulher é uma história recente. Se tradicionalmente ela tem sido ignorada, excluída enquanto sujeito histórico, o lugar que lhe cabe na história tem sido dado por representações que lhes são dadas pelo homem, únicos historiadores por muito tempo.

Certamente que, olhar a mulher como vítima, enganada, humilhada, excluída é repetir o discurso da desgraça da mulher construído socialmente. Por outro lado, negar a “penalização histórica imposta à mulher, é ingenuidade. (...) A história da mulher deve ser a história das situações relacionais entre homens e mulheres, mantida ao longo do tempo e não a fatalista servidão que a condição feminina impõe”, como sustenta a psicanalista Elizabeth Colling.

Se historicamente encontramos o feminino na posição de um crime, hoje os lugares do feminino e do masculino são socialmente bem delineados e demarcados - embora o pensamento denominado pós-moderno tem promulgado o fim das referências - provocando uma estagnação do todo, causando o empobrecimento das relações. Por sua vez, percebe-se uma preocupação cada vez maior das chamadas ciências humanas em oferecer categorias de análise que possibilitem o estudo do feminino desde uma perspectiva que promoverá o achatamento das desigualdades a partir de uma política de gênero e ainda será apta a desvendar as imagens construídas em torno do feminino na cultura.

Cultura e linguagem se imbricam. Discursivamente, a chamada identidade feminina funda-se na interiorização dos enunciados produzidos em uma perspectiva masculina, em uma estrutura simbólica a partir de uma posição construída lingüisticamente. Desvendar os meandros e as construções implícitas que são feitas lingüística e extralingüisticamente constituem-se um dos objetivos do analista que se propõe a investigar discursivamente a construção da imagem de mulher em uma produção impressa contemporânea.

Mas não nos iludamos, o feminino sofre deslocamentos.

Para saber mais:

VAISTMAN, Jeni. Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

ROCHA-COUTINHO, M.L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

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Cássio Miranda é psicanalista, doutorando em Letras pela UFMG e escreve todas as terças. E-mail: cassioedu@oi.com.br

 
 

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