Sexta-feira - 20/04/07
Diálogos imaginários de um alterego ensandecido

Com escrita contundente no significado e significante, o psicólogo Ézio Flávio Bazzo prossegue como herdeiro de Nietzsche na arte de filosofar com o martelo

“Bokodori – E entao, Nietzsche, como e que vai a morte?”.

“Nietzsche – Bem morto! Absolutamente morto! Nem sombras de um mundo ‘depois da morte’, nem vestigios de deuses, virgens, purgatorios e Budas... absolutamente nada! So o vazio da morte, um coador de cafe as avessas. A decomposiçao lenta da carne, dos ossos e da filologia introjetada em minha memoria... Ah! A morte e um balsamo, uma obsessiva presença do lazer, do ocio eterno, da vagabundagem infinita. A liberdade absoluta e cabe dentro dos poucos centimetros do caixao, da tumba, do cemiterio...” (Bokodori X Nietzsche, p.43).

Parte 1. - Diálogos Imaginários, nome da primeira metade do livro Maldições, prazeres e verdades (Lilith Antieditora, 134 págs.), do escritor brasiliense Ézio Flávio Bazzo1. Permeado pela narrativa, é um livro de contos no qual os personagens são construídos de forma crua, humana, sem rodeios, em espaços temporais muitas vezes distintos, o que desencadeia uma série de diálogos ácidos, sarcásticos e nada convencionais. Para os desavisados, a ausência dos acentos circunflexo, agudo, til, grave e crase tem sua razão de ser. É uma constante e um diferencial nesta obra, que por toda a sua extensão reflete acerca de questões existenciais, niilistas e tudo que provém do pessimismo e descrença nos valores construídos pela cultura hegemônica, principalmente a ocidental, como a valorização excessiva da família, da religião, das normas, do governo, do patriotismo, dentre outros. “Os cinco sinais graficos descritos acima, foram radicalmente eliminados deste texto. Ha muito farejavamos sua inutilidade, sua caduquice e seu mofo. Hoje, os dispensamos definitivamente, como se dispensou os suspensorios, os cuecoes e as anaguas, nas sociedades modernas. Aqueles que durante a leitura forem sentindo uma especie de hipertensao, devem efetua-la com um lapis Joao Faber n° 02 a mao. Os outros, podem ter certeza que facilmente dessacralizarao todas as demais bobagens desse seculo”, ironiza e provoca Bazzo no prólogo de seu livro.

Publicado pela editora Lilith, a obra apresenta uma série de contos em forma de entrevistas e diálogos de Bokodori2 com celebridades como Fidel Castro, Nietzsche, Freud, dentre outros. Alguns desses diálogos jamais aconteceriam em situações reais devido a fatores temporais e/ou ideológicos. Mas eles acontecem. A forma encontrada para esta abordagem é o sarcasmo, o delírio e, ao mesmo tempo, a lucidez capaz de confrontar todos as seguranças que um homem possa ter em si mesmo e em suas crenças. É um composto de questões paradoxais, que na maior parte do tempo mexe com os tabus do leitor a ponto de levá-lo a uma reflexão mais profunda de si mesmo e dos valores dos quais compartilha com o outro. É um confronto direto as verdades absolutas e convicções de cada um. A cada texto lido um ídolo vem ao chão, em migalhas.

A obra, em todo o tempo, transita nas praias da literatura, da ficção e do imaginário cultural. Buscando o desconhecido, o curioso, o autor traz à tona um mundo cheio de significados irônicos e contundentes, a partir do momento que a invenção de um onipresente jornalista (deus?), de forma ousada, foge às curiosidades convencionais ao se deparar face-a-face com Adolf Hitler, por exemplo, morando na cidade de Blumenau - SC -, nos anos de 1980. “(...) quero dar um exemplo daquilo que considero o Holocausto alemão”, diz Hitler ao ser questionado por Bokodori. “Você já ouviu falar de uma cidade alemã chamada DRESDEN? Não? Ah, ah, ah... veja como a ignorância propicia a ignorância! Percebes como vives num país de analfabetos? Este país é um imenso viveiro de parasitas que ingenuamente fortalecem as mentiras históricas... Palmas para a Globo, para a Manchete e para a Golden Cross! Dresden, foi uma cidade alemã literalmente ANIQUILADA pelas bombas dos ingleses e dos americanos (vocês os chamam macacamente de aliados) durante 3 dias do mês de fevereiro de 1945. Sobre esta pacata cidade alemã, onde 99% da população era civil, foram lançadas 9.900 bombas de alto poder explosivo e milhares de bombas incendiárias (...) Homens, mulheres, crianças e animais foram esmagados de maneira covarde, suja e criminosa” (Bokodori X A. Hitler, p.55). Com esse veneno, Bazzo busca desmistificar a história oficial, através de fragmentos reais e imaginários, questionando de forma muito rígida as heranças históricas que relatam os fatos da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, de forma extremamente parcial e descontextualizada.

De outras formas, o autor usa de estratagemas que viabilizam a aproximação do leitor com os grandes ícones da arte, tratando estes ídolos modernos, como o pintor Salvador Dali, de forma muito crua - o que traz esses ídolos para esferas mais próximas da realidade. É o ato anárquico de derrubá-los do alto estandarte e aproximá-los da plausível realidade dos meros mortais, revelando assim o asco, o sujo e (im)potente lado humano existente por trás de nossas lustrosas máscaras:

“Bokodori – Noventa anos, Dali. Como é ser artista e estar com noventa anos?”.

“Dali – Uma Tragédia! A idade nos desagrega dos pés até o mais miserável dos fios de cabelo (...) O nariz cresce, o pau murcha, os vasos capilares e coronários se obstruem como os esgotos das casas antigas da Cataluña, as mãos tremem, os osso vão ficando careados, a visão se extingue, o talento evapora como o éter quando esquecemos o vidro aberto” (Bokodori X Dali, p.9).

Em certos pontos do livro, criatura se volta contra o criador: uma dos contos desta primeira metade da obra retrata Bokodori sendo entrevistado por sua revista, a Víbora, que ganha vida ao dialogarem acerca de suas convicções. Metalingüisticamente, é como se o próprio autor fizesse uma reflexão e um questionamento a si próprio sobre suas questões existenciais, sua inseguranças e anseios. “Sou, isso sim, contra os milhares de homicídios que são experimentados como suicídios. Todas as mortes ocorridas sob pressão, por angústia ou desespero são homicídios, não suicídios. O Estado, a família e a sociedade como um todo deveriam ser processados por essas mortes. O suicídio original é sempre um ato natural, tranqüilo, voluntário, definitivo... um verdadeiro ato de fé” (Bokodori X Víbora, p.31). Resposta ácida de Bokodori a sua criação quando questionado acerca do suicídio.

Como notado nessa última citação - do conto Bokodori X Víbora – e em outros trechos, as palavras se encontram devidamente acentuadas, quebrando a rotina antigramatical proposta no início do livro, mostrando ao leitor que, de fato, esses sinais gráficos não são tão úteis como se pensava.

Chegando na segunda metade do livro, Parte 2. - Aporias de um meditabundo, o autor lança ao chão a capa de Bokodori e traz a tona, como mágica, o lado mais poético do livro - com textos produzidos por Bazzo em meio a suas viagens pelo mundo. É uma espécie de complemento reflexivo, quase um bálsamo, já que no início da sua obra levamos uma seqüência inexprimível de murros na cara, até o ponto da desfiguração completa. É o momento em que as batidas do coração desaceleram e tentamos compreender tudo aquilo que fora exposto de maneira tão contundente contra as nossas verdades e vontades. O autor evoca pensamentos de grandes nomes como Mao Tse Tung, Shakespeare, Camus, Bakunin, dentre outros, demonstrando de forma mais norteada o circo de horrores que insistimos em construir durante todo este tempo.

A exploração do homem pelo próprio homem, seja no âmbito físico, metafísico ou intelectual, é representada de forma sublime em um dos desenhos que ilustram a obra. A mãos de um senhor burguês que, ao mesmo tempo em que espreme a mão de um trabalhador (numa hipócrita tentativa de se passar como uma cordialidade), colhe o líquido extraído dela em um copo. “(...) Impossivel sera o individualismo, uma vez que a superpopulaçao e os filhos do acaso invadem a terra e violentam sistematicamente o coraçao das pessoas mais interessadas em si mesmas. Falso sera o extase-sexual-sensual, uma vez que os homens e as mulheres, vitimas da enfermidade, odeiam-se de forma clara e irreverssivel (o feminismo, o machismo, e a homossexualidade o podem demonstrar” (De minhas crenças niilistas, p.105), diz o autor, no texto em que acompanha a ilustração e retoma a linguagem antigramatical proposta inicialmente.

Mesmo escrito no ano de 1987, Maldições, Prazeres e Verdades permanece atual devido ao seu conteúdo atemporal. Ézio, sem pudor, vomita muitos fragmentos de sua visão crítica de mundo e sua descrença nos valores otimista propagados pelas utopias burguesas, nas quais os homens seriam livres e iguais. A subjetividade toma o lugar da busca pela objetividade. A barreira entre jornalismo e ficção passa a não existir, assim como propunha Hunter Thompson e o subversivo estilo Gonzo3 de se fazer jornalismo. Prioriza-se nesta obra as particularidades, peculiaridades e a liberdade expositiva dos temas que, não necessariamente, possuem uma relevância primária, essencial. O asco, o nojo e a imundície são peças fundamentais desta literatura marginal, que não se sente à vontade no comodismo mercadológico do capitalismo e, na contra-capa do livro, pela “boca” de seu autor, sussurra sensualmente no ouvido dos leitores ditos engajados: “Ouça meu conselho; um conselho que sempre serve, pelo menos para os ratos de livrarias: deposite-o cautelosamente na estante, dê meia volta sobre os calcanhares e suma do mapa”.


BAZZO, Ézio Flávio. Maldições, prazeres e verdades. 1ª ed. Lilith Antieditora, Brasília: 1987.


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Nilmar Barcelos é uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa. Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz, freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com

 
 

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