19/03/07
O dia da pergunta

"Pai, Deus existe?". Nos segundos eternos seguintes, não me faltou tempo para rever toda a minha vida e conceitos, avaliando experiências e até mesmo aquelas informações não-confirmadas que, mesmo sem qualquer certeza, resolvemos, em algum dia de nossas vidas, bancar como verdades universais, com cara de 'seguros e decididos'.

Engraçado, sempre pensei que a primeira pergunta constrangedora - e, por essa razão, complexa - de um filho seria a popular e 'clicheresca' sobre sexo. Que nada! A pergunta-bomba não veio sequer sobre algo material. "Será mesmo que ele me perguntou isso? Pode ter sido uma afirmação", tento me ludibriar, ignorando, por alguns fragmentos de tempo, o estático, entusiasmado e questionador par de olhos verdes à minha frente. "Não. Definitivamente, foi uma dúvida".

Nos meus tempos de criança, a grande preocupação dos adultos era - ou pelo menos parecia ser - não quebrar a magia. Apesar da existência de tórridas críticas a esse comportamento dos pais, nunca deixou-se de valorizar, também, a fantasia e o sonho, presentes no imaginário dos inspiradores adultos do futuro, os únicos ainda não corrompidos pela razão, espécie de organização de pensamento que, infelizmente, ganhou, em alguma etapa que desconheço, o status de incontestável.

No entanto, agora, posto em xeque por uma vida que ainda está apenas no início, tenho, nesse momento, minha maturidade rendida. Minhas idéias, de tão confusas, ora se sustentam sobre a 'verdade' científica, ora sobre as minhas próprias crenças, e também sobre a importância do mágico, da fé, do suporte imaterial que, por milênios, temos buscado para amenizar a angústia nossa trajetória. Trajetória essa - vale lembrar -, num mundo que só nos oferece, como certeza, a dúvida, inferida a partir do famoso questionamento "De onde viemos, para onde vamos?".

E então, novamente na sala, após uma viagem pelo pensamento, resolvo me afastar tanto das respostas apaixonadas, como também das imparciais. "Tenho minha convicção, mas apresentá-la a alguém tão novo não seria uma maneira de influenciar, precocemente, a dele? Ser referência para alguém nos dá o poder de desempatar um julgamento de ordem pessoal? Mas e se a permanência da dúvida criar mais angústia?". Apenas dúvidas.

Com meu filho no colo, ofereço-lhe um olhar de conforto. Sem o que dizer, deixo que ele me puxe até a janela. Com o dedo indicador, ele aponta o horizonte - e cada detalhe. Nada surpreso com o meu semblante de dúvida, meu sucessor não esconde o alívio e dá sinais de satisfação, já sem aguardar qualquer resposta. "Pois é, pai, é o que acho também". E fomos jogar bola.

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Guilherme Amorim é um mineiro simples, metido a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso, é jornalista. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos. E-mail: guilbh@gmail.com

 

Sobre a coluna Trejeitos:
Cada qual do seu jeito, cada um com seu trejeito. O que não muda é o amor à profissão e a vontade de registrar em palavras o que não pode ser esquecido: a capacidade de falar por aquele que cala, a crítica, o bom jornalismo, a denúncia, os vários ângulos, as diversas histórias, o lirismo.

Nesta coluna, o leitor encontra crônicas escritas sob a ótica de três diferentes estilos. Os jornalistas Ariadne Lima, Cristina Mereu e Guilherme Amorim escrevem sobre temas variados a cada semana, partilhando com o público, cada um, um jeito diferente de enxergar a vida.

 
 

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