09/04/07
Porque sempre pôde...

Silêncios ousam falar por nós quando momentos insistem em ser sonoros. À janela, fitava as árvores, pensativo, mas não em busca de respostas - já tinha certezas demais. O ar da graça na varanda, com vista para toda a cidade, ao alvorecer, era um abraço imaginário (de dono, é bem verdade). A tranqüilidade, ora poética, agora sentenciava o refúgio de sentimentos suprimidos. O olhar, que em outros tempos fora de gigante, naquele instante cessava como poucos. Aqueles tão imponentes olhos, que um dia deixaram de lado a pureza da juventude para validar a consonância conveniente, agora calculavam sua nova trajetória - sem medo, até com certo entusiasmo. Estranho, mas verdade.

Com o terno pronto e o sorriso maroto, era dele o tal momento, o segundo antecedente ao minuto mais aguardado, o ápice de uma vida que tão-somente espera um desfecho verbal - com martelinho ou não.

Jornal em mãos e goles espaçados de café, sem a rotina de outros tempos: o destino, agora, era, senão perverso, irônico. Riam dele os ponteiros do relógio, em canto alinhado e sereno, chamando, sem muita pressa, mas sem delonga, o que muitos pensariam em evitar: a 'hora da verdade'. Pois ele não queria evitar nada. E sorria de volta para os ponteiros. Confiança de vida ganha.

De peito estufado e gravata vermelha, olhou para o relógio e partiu. Não lhe abriram portas, nem sequer um 'bom dia'. "As coisas mudam, mas voltam". No caminho, observava as crianças, os movimentos nas bicicletas, o sorriso puro de preocupações inocentes. Em seu mundo de gente grande, infância era utopia poética - e imprecisa. Já a realidade, era um universo simples - e controlável.

Frente ao destino inevitável, desceu do carro e encarou o desafio do momento. Não sem antes respirar fundo, entrou no prédio, sem máscaras, sem discursos prévios, muito menos pronto a declarar o que quer que fosse às pessoas que se acotovelavam para lhe estender microfones e máquinas fotográficas. "A vocês não devo nada", declarou suficientemente baixo para não merecer anotação, mas com bastante sonoridade para intimidar um qualquer. E braços recuaram, cedendo ao silêncio que novamente se fez quando ele terminou de passar pela última porta.

No tribunal, sangue frio contava mais pontos que qualquer outra coisa. "Sei disso como ninguém". Questionado em singelos doze ou quinze minutos, isentou de qualquer culpa todos os figurões de alta classe, sem, para isso, precisar se comprometer. E como tinha documentos! Provas que derrubavam outras provas, que mereceriam ser questionadas, não fosse a procedência incontestável: títulos e nomes sabem como revestir uma mentira bem contada. Se a pedido político ou por dinheiro, não se sabe. Fato é que ele fez. E fez porque podia.

Entre protestos e braços jogados aos céus por jovens com esperança na mudança do universo, sorriu gentilmente para os novamente agradáveis empregados - e admiradores. E todos ali sabiam que tudo não passava de um jogo de compadres, com cartões de crédito e afinidades fomentadas pela desigualdade social. Mas viram o figurão ir-se embora, sem qualquer chance de seguir outro caminho qualquer, senão o que ele queria - e já havia decidido.

Agora, dobrando a esquina, já pensava em novas moedas de troca. "Enquanto fazem escolhas, crio oportunidades". E assim ele seguiu feliz. Por quê? Porque sempre pôde...

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Guilherme Amorim é um mineiro simples, metido a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso, é jornalista. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos. E-mail: guilbh@gmail.com

 

Sobre a coluna Trejeitos:
Cada qual do seu jeito, cada um com seu trejeito. O que não muda é o amor à profissão e a vontade de registrar em palavras o que não pode ser esquecido: a capacidade de falar por aquele que cala, a crítica, o bom jornalismo, a denúncia, os vários ângulos, as diversas histórias, o lirismo.

Nesta coluna, o leitor encontra crônicas escritas sob a ótica de três diferentes estilos. Os jornalistas Ariadne Lima, Cristina Mereu e Guilherme Amorim escrevem sobre temas variados a cada semana, partilhando com o público, cada um, um jeito diferente de enxergar a vida.

 
 

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