12/03/07
Alice no país da impunidade

Estava pensativa. Levava no olhar a reticência de quem achava que as coisas estavam inacabadas e buscava explicações para a incompletude de fatos, ações, pessoas. A pergunta no outdoor martelava em sua cabeça. A mensagem lembrava a morte de João Hélio, nome que ficará registrado nos jornais e por muito tempo na memória do brasileiro, associado ao terror gerado pela barbárie praticada na morte de uma criança de apenas 6 anos.

A pergunta no outdoor cobrava uma atitude: "Não vamos fazer nada?" Alice queria muito fazer alguma coisa. Naquele instante, no entanto, a descrença no ser humano dominava suas idéias. Já fazia um mês do acontecido. Há um mês Élson e Rosa Vieites choravam a morte de seu menino. Há um mês a comoção tomava conta de um país de dimensões continentais.

O questionamento que tomava Alice naquele instante a fez recordar de todas as Rosas e Elsons que o Brasil coleciona em sua história. Pais e mães que, há muito mais que um mês - há anos - choram pela morte de seus filhos. Glória Perez, Jocélia Brandão, Cleide e Carlos Santiago, Yen Yin e Feng Hsueh, Ari e Márcia Friedenbach, Lenice Silva Café e tantos outros, Joões, Marias e Josés, que viram seus filhos mortos pela barbaridade de criminosos sem sentimentos e, o que é pior, na maioria dos casos, sem punição severa.

Alice encostou-se no banco da praça, respirou fundo. Não queria que, com João Hélio, a história de impunidade se repetisse. Não queria a espetacularização momentânea, o comodismo, o esquecimento. Muitos dos crimes hediondos de que Alice se recordava já não estavam na lembrança das pessoas e, se estavam, não se sabia que rumos haviam tomado na justiça. Justiça? Alice já não confiava na dos homens.

Guilherme de Pádua recebeu indulto da pena e circula livremente pelas ruas de Belo Horizonte, onde se casou novamente e formou-se em Ciência da Computação. Os irmãos Willian e Wellington Gontijo, assassinos da menina Miriam Brandão, seqüestrada e queimada em 1992, embora condenados a 21 anos de prisão, foram libertados após cumprirem 8 anos da pena.

Frederico Carlos Jana Neto, Ary de Azevedo Marques Neto, Guilherme Novita Garcia e Luis Eduardo Passarelli, responsáveis pelo trote que matou o calouro de Medicina Edison Hsueh, ingressaram sem impedimentos no curso da USP e hoje atuam tranqüilamente como médicos. O criminoso “Champinha”, após ter estuprado, esfaqueado e degolado Liana Friendenbach, além de ter assassinado Felipe Café com um tiro na nuca, desfruta da liberdade e da ficha limpa que conquistou ao completar maioridade.

A comprida lista de exemplos incomodava Alice. “Não vamos fazer nada?”A frase do outdoor vinha intermitente em sua cabeça. Lembrou a luta dos pais de Gabriela Prado Maia Ribeiro, cuja morte por uma bala perdida no metrô de São Paulo deu origem à ong conhecida como “Gabriela sou da paz” (http://www.gabrielasoudapaz.org), que reúne pais de vítimas da violência a fim de mobilizar a população e reivindicar modificações no Código Penal brasileiro, que, devido às tantas brechas, permite a soltura de criminosos antes de completarem a pena. “Com João Hélio a história não pode se repetir”, pensou Alice, inconformada com a possibilidade de que os assassinos de João Hélio possam voltar às ruas em poucos anos.

Alice também queria lutar. “Trocar o luto pela luta”, disse baixinho, lembrando-se da frase lida em algum jornal. A triste morte de João Hélio teria de ser transformada em marco de mudanças positivas. Um mês depois da morte do garoto e os jornais já apontavam algumas delas. Na Câmara dos Deputados, alterações na lei de crimes hediondos já foram votadas em caráter de urgência e seguem para aprovação no Senado. Alice, no entanto, queria mais e estava disposta a fazer sua parte. “Uma andorinha só não faz verão”, diriam os pessimistas. “Mas todos os pássaros unidos podem apagar o fogo da floresta”, pensou a jovem antes de levantar-se resoluta. Respirou fundo e caminhou serena. No dia seguinte faria uma visita à Assembléia Legislativa. Seria um ótimo começo.


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Do jornalismo à literatura, ou vice-versa, Ariadne Lima é apaixonada por letras. Jornalista, defensora do jornalismo literário (junção de suas duas paixões), procura ver e descrever o mundo usando as lentes da poesia. E-mail: ariadnemlima@yahoo.com.br

 

Sobre a coluna Trejeitos:
Cada qual do seu jeito, cada um com seu trejeito. O que não muda é o amor à profissão e a vontade de registrar em palavras o que não pode ser esquecido: a capacidade de falar por aquele que cala, a crítica, o bom jornalismo, a denúncia, os vários ângulos, as diversas histórias, o lirismo.

Nesta coluna, o leitor encontra crônicas escritas sob a ótica de três diferentes estilos. Os jornalistas Ariadne Lima, Cristina Mereu e Guilherme Amorim escrevem sobre temas variados a cada semana, partilhando com o público, cada um, um jeito diferente de enxergar a vida.

 
 

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