Por que não conseguimos conter a agressividade que, para além da escala pessoal, ameaça o planeta como um todo? Podemos calcar esta violência sobre os pilares do individualismo exacerbado, hedonismo e narcisismo?
 

09/08/07
A violência e o processo civilizatório

Nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão das pulsões. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. Freud, 1908

Não há quem conteste a violência na sociedade atual. Temos a impressão de que estamos imersos em uma crise de sentido sem precedentes. Parece faltar um rumo histórico, uma posição ética que norteia a existência e que, de alguma forma, possa interromper a imensa onda de violência que observamos em todas as camadas do tecido social.

Movimentos para tentar mudar esta situação não faltam. Por exemplo, em 1992, no Rio de janeiro, foi realizada a conferencia das Nações Unidas que tinha como pauta o meio ambiente e o desenvolvimento. Realizou-se, também, o Fórum Global 92 que foi promovido pelas entidades da sociedade civil. Na ocasião, foi elaborada a primeira minuta da Carta da Terra conclamando a todos que seguissem seu espírito e princípios tanto em nível individual quanto social.

A Carta da Terra foi um movimento pioneiro de elaboração de um código da ética global por um desenvolvimento sustentável que teve como proposta, a partir de três princípios interdependentes, mudanças em nossas atitudes, valores e estilos de vida. Tais princípios propunham vetores que conduziriam a vida dos indivíduos, a comunidade de interesses entre estados, e a apreciação dos princípios de um desenvolvimento sustentável. A Carta da Terra visava, enfim, uma ética universal para a sociedade mundial que, através de princípios básicos, conduziria o comportamento da economia e do meio ambiente.

Desde então 15 se passaram. Pouco, ou quase nada, mudou. O momento critico parece ter se tornado ainda mais critico, enquanto os debates sobre o reencantamento do mundo, sobre ética, direitos humanos e meio ambiente aumentaram. Ao mesmo tempo, a violência cresce assustadoramente, a ponto de tornar-se tão corriqueira que nos afeta cada vez menos. Quanto à "Carta da Terra", o recente relatório do Grupo Intergovernamental sobre a Evolução do Clima", apresentado em Paris em 02/02/2007 (O Globo, 03/02/2007), mostra estamos em um ponto limite. O relatório insiste que nas decisões e iniciativas dos signatários, a preocupação com o meio ambiente deve ser prioritária. Torna-se urgente adotar medidas enérgicas para afastar os perigos, em particular os relativos às mudanças climáticas. O documento destaca "a importância da adoção de uma Declaração Universal dos Direitos e Deveres Ambientais, que garanta um novo direito humano: o de um ambiente saudável e preservado". O grande vilão parece ser o modelo econômico "baseado no desperdício desenfreado de recursos naturais e na poluição", e advoga-se sua substituição por outro que esteja "a serviço do desenvolvimento sustentável e da luta contra a pobreza".

Ao mesmo tempo, parece que os apelos em favor da preservação do planeta não são, em absoluto, ouvidos. Apenas um exemplo: ao mesmo tempo em que os cientistas alertam sobre as conseqüências do desgelo cada vez mais assustador no pólo norte, os grupos econômicos estão disputando as novas rotas marítimas que começam a viabilizarem-se, devido ao não congelamento do mar durante o inverno. Vemos como a recusa (Verleugnung) dos limites impostos à satisfação pulsional pelo principio de realidade, em outras palavras recusa da castração, mantém, ainda que ao preço da destruição de toda forma de vida, o princípio de prazer, ou seja, a onipotência do narcisismo primário. O impressionante neste processo autofágico é que, os paises que lutam para aumentar a produtividade econômica e se organizam para defender seus interesses no exterior quando eles são objetos de ataques de grupos "terroristas" (muitas vezes o nome "terrorista" designa simplesmente aqueles que não apóiam a política dos paises ricos), são os mesmos que perpetuam atos muitos mais terroristas pois, afetam, como evidencia o relatório citado do Grupo Intergovernamental sobre a Evolução do Clima, os interesses de todos os paises do mundo: a sobrevivência do planeta.

Por que vivemos neste paradoxo? Por que não conseguimos conter a agressividade que, para além da escala pessoal, ameaça o planeta como um todo? Podemos calcar esta violência sobre os pilares do individualismo exacerbado, hedonismo e narcisismo? Devemos acusar o sistema capitalista e o neoliberalismo? Pensamos que não.

Um olhar na História nos informa que a violência sempre esteve presente: os relatos da aurora da humanidade, ainda que míticos, nos restituem uma parte da agressividade (recalcada) inerente ao processo civilizatório: a parcela do sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas das quais nos fala Freud. No Livro do Gênesis, a primeira família conhecida foi abalada pela rivalidade dos irmãos. Rivalidade que, segundo Freud, foi o primeiro conflito que a jovem espécie teve que enfrentar, após o "crime principal e primevo da humanidade" .

Intolerâncias religiosas e políticas; guerras, dominação de nações; a virulência sem precedentes que acompanhou os grandes descobrimentos e levou à destruição das grandes civilizações das Américas; regimes totalitários, e a queda desses regimes... tudo isso são lugares comuns no curso da humanidade. Se, por outro lado, temos a impressão que a violência nunca foi tão grande, acreditamos que isso se deva aos avanços tecnológicos, em particular à informação difundida ao vivo e em tempo real sobretudo via internet, que contribuíram para globalizar e banalizar a violência.

O que, talvez, possamos chamar de "novo" na atualidade, mas que do ponto de vista da economia libidinal, é apenas uma repetição, é aquilo que foi criado e posto em prática pela ideologia capitalista: a ilusão que os objetos são acessíveis a todos. A partir daí, todo objeto que, como qualquer objeto, poderia candidatar-se a objeto de desejo, é transformando, via regressão, em objeto de necessidade, o que o priva de toda e qualquer possibilidade de cumprir a função prometida: a "realização" do desejo. Como objeto de necessidade ele é, também, objeto idealizado. Ou seja, ao mesmo tempo invejado e persecutório, o que impede toda atividade sublimatória. Encontramo-nos, assim, submersos no imaginário sem nenhuma possibilidade de sublimação: sem circulação pulsional não ocorrem novas fusões da pulsão: Eros perde sua força.

Resumindo até aqui: a atualidade nada faz além de produzir, pela repetição do mesmo sob formas variadas, efeitos ilusórios que mascaram, através do imaginário cultural onde o sujeito encontra-se imerso em um dado momento sócio-histórico, o mal-estar (Unbehagen) inerente à cultura.

Freud e o processo civilizatório Freud dedicou grande parte de seus escritos ao estudo da formação da civilização. Dentre os quais destaca-se O mal-estar na civilização onde ele sustenta que o desenvolvimento da civilização só é possível através da renuncia das moções pulsionais, em particular as vingativas e as agressivas, e pela introjeção das representações culturais em detrimento do narcisismo primário, isto é, pelo acesso ao mundo da linguagem, do simbólico. O recalque torna possível a existência da cultura que organiza e diferencia o homem, pois, via recalque, somos levados a abandonar nossos primeiros objetos sexuais, “o que constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já experimentou” . Pela sublimação, a energia recalcada é transformada em força de trabalho tornando possível o processo civilizatório. Entretanto, a renúncia pulsional só é suportada se, em troca, a civilização garantir ao sujeito o acesso a satisfações substitutivas. Ao mesmo tempo, por mais que a cultura ofereça, toda e qualquer satisfação é, por definição, incompleta, pois jamais substituirão as renuncias pulsionais primarias, o que deixa na alma humana uma ferida que não se cicatriza, originando o «mal-estar» do qual sofre o homem .

Esse «mal-estar», gerador de agressividade, deve ser compreendido, segundo Lacan , de forma estrutural por implicar uma experiência subjetiva que afeta o modo narcísico de identificação. O outro, o diferente que nos remete à castração, constitui o alvo por excelência de nossa agressividade: somos agressivos por sermos castrados. O mal-estar, revelador do nosso desamparo - Hilflosigkeit -, contra o que nada podemos fazer, é o que nos constitui. Neste sentido, revoltar-se contra a cultura, contra o Outro, é revoltar-se contra nós mesmos, o que só faz aumentar a frustração e a angústia.

O percurso descrito até aqui é próprio ao humano. Este só se constitui a partir do recalque que, por sua vez, gera mal-estar. Os processos identificatórios, cujos precipitados formam o Eu - o ego é um precipitado de catexias objetais abandonadas -, não é isento de violência , da mesma forma que as representações simbólicas, que são tributárias do imaginário da cultura onde emergem, são impostas ; todo encontro com o outro nos remete à diferença à castração, logo à agressividade; não há satisfação substitutiva que repare nosso narcisismo abandonado; todo contexto social - independente do modo de produção - pode criar situações que levam a uma ruptura do laço social produzindo violência.

Retomando a premissa de trabalho deste texto: a violência é constitutiva da cultura, pois uma é erigida sobre a renúncia, que nunca é total, da outra, embora em cada época, em cada cultura, e em cada contexto sócio-histórico, ela se apresente com uma face própria. (Hoje, o problema do desmatamento tornou-se um debate fundamental. Entretanto, é interessante lembrar que, antes da época romana, a Europa possuía florestas imensas que não foram poupadas, com a tecnologia da época!) Na busca de satisfações substitutivas que mantenham a ilusão de onipotência, a espécie humana sempre reagiu com violência frente aquilo que ameaça seu frágil narcisismo.
Em face de nossa evidente participação em nossa própria destruição, cabe a pergunta: seria a violência uma fatalidade no destino da humanidade? Aparentemente a resposta é “sim”.

Em Além do princípio de prazer Freud sustenta que “o objetivo de toda vida é a morte”; que o sujeito traz em si o germe de sua própria morte. Nele existe, como em tudo que é vivo, uma tendência - uma pulsão - que conduz o que é vivo à morte: “todo ser vivo morre, ou seja, retorna ao estado inorgânico devido a razões internas ”. Para Freud, o retorno ao estado inanimado é o destino de toda vida.

Como sabemos, ao longo de sua obra, da Interpretação dos Sonhos de 1900, ao pós-escrito acrescentado em 1935 a Um estudo autobiográfico, Freud sustenta que a gênese do "eu" (ontogênese) repete, em escala menor e em tempo reduzido, os processos presentes no desenvolvimento da civilização (filogênese). Se ao "eu" cabe dominar as excitações externas e internas próprias à sua organização, à civilização o domínio tanto as tensões internas - sobretudo narcísicas, entre seus membros - quanto às forças da natureza. Para Freud, enfim, o estudo dos conflitos dinâmicos entre o Eu, o isso e o supereu é fundamental para a compreensão das experiências primitivas que deram origem à cultura.

Se, então, a história do Eu repete a história da espécie e todo organismo vivo trás um seu bojo a sua própria destruição, acreditamos que o potencial destrutivo encontra-se, igualmente, atuante na cultura. A violência desde sempre presente na espécie humana em todos os âmbitos da existência, da qual tanto se fala e que, ao mesmo tempo, não cessa de aumentar, seria inevitável por tratar-se-ia de um movimento interno à organização da cultura; à presença da pulsão de morte na cultura. Como para o ser vivo, a cultura segue o mesmo roteiro: o retorno ao estado inanimado devido à tensão inerente a sua constituição. Como para o indivíduo, a cultura está condenada, por seus próprios meios internos, a desaparecer, a voltar ao estado inorgânico. E, ao que tudo indica, é para lá que estamos caminhando. Basta olharmos em volta para constatar que no conflito Eros x Tânatos, o último tem sido o vencedor. A desfusão pulsional atinge seu paroxismo em situações extremas - guerras, atos de extrema crueldade, torturas... - onde o outro é reduzido a objeto pois, o pacto social é destruído . A quebra deste pacto provoca a destruição de "nossos ideais éticos e estéticos" .

Mas, o paradoxo continua: são nos processos sublimatórios, derivados diretos do recalque pulsional, que devemos buscar um dos pontos de origem da violência. A sublimação, nos lembra Freud , é um desfecho possível “de uma disposição constitucional anormal”, e nossas virtudes nada mais são do que formações reativas a nossa disposição perversa. Para Freud , por exemplo, a disposição artística, que traduz uma manifestação da atividade sublimatória, é o resultado da mistura, em diferentes proporções, “de eficiência, perversão e neurose”. A fórmula é explosiva e, cedo ou tarde, uma erupção parece inevitável devido ao aumento da pressão. Entretanto, qualquer destino que se tente dar à pulsão recalcada - sublimações, formações reativas, substitutivas... – jamais estará à altura da experiência primaria de satisfação. No fundo, não estamos fazendo nada mais, utilizando os meios que o momento sócio-histórico nos oferece, que voltarmos ao inorgânico: a violência expressa como destrutividade traduz, na cultura, a morte por razões internas ao organismo.

A idéia corrente segundo a qual atravessamos um momento histórico particularmente violento não nos parece sustentável: sentimo-lo mais intenso, pois, vivemos agora e é agora que somos ameaçados. As mudanças trazidas pela revolução burguesa, que transformaram radicalmente o mundo medieval e derrubaram Verdades Religiosas seculares levando a um profundo questionamento da ordem vigente, não geraram menos truculência do que as mudanças contemporâneas. A falsa idéia de estarmos progredindo advém da "diferença entre o prazer efetivo obtido pela satisfação e o prazer esperado" . É assim que entendemos Freud quando ele escreve:
Portanto, as pulsões orgânicas conservadoras teriam assimilado cada uma dessas modificações impostas no percurso de vida dos organismos e as preservado para a repetição. É por isso que elas nos dão a enganosa impressão de serem força que anseiam por mudança e progresso, quando, na verdade, continuam a buscar seu antigo objeto, e para tal seguem tanto por caminhos antigos quanto por novos desvios. Não é difícil apontar o objetivo final dessa tendência orgânica. Se o objetivo da vida fosse chegar a um estado nunca alcançado anteriormente, isso estaria em frontal contradição com a natureza conservadora das pulsões. Portanto, este objetivo deve ser muito mais o de alcançar um estado antigo, um estado inicial, o qual algum dia o ser vivo deixou para trás e ao qual deseja retornar mesmo tendo de passar por todos desvios tortuosos do desenvolvimento.

Acreditamos, enfim, que a tendência a atribuir à atualidade uma violência desmedida deve-se à questões puramente narcísicas. O passado sempre exerceu uma enigmática atração para o homem. Tendemos a evocá-lo quando o presente se nos apresenta por demais doloroso na esperança, perdida desde sempre, de lá reencontrarmos a idade do ouro: “o encantamento de [nossa] infância, que [nos] é apresentada por [nossa] memória não imparcial como uma época de ininterrupta felicidade” .

Da mesma forma, considerar a economia de mercado, a globalização, o capitalismo selvagem, e assim por diante, como os grandes vilões da dramática situação em que vivemos, significa esquecer que outras formas de organização econômicas ao longo da história nunca estiveram isentas da violência. Não se trata, é claro, de ser a favor, ou contra, um determinado modelo econômico, e menos ainda de negar os estragos perpetrados pelos diferentes modelos, em particular o capitalismo. Não é por ai que se situa o debate deste texto. Estamos apenas chamando a atenção, retomando as palavras de Freud já citadas, que as transformações sócio-econômicas dão a impressão “de serem forças tendentes à mudança e ao progresso, ao passo que, de fato, estão apenas buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos”. (Estamos, aqui, em um aspecto do debate Freud/Marx)

Concluímos com uma reflexão: a sublimação, condição sine qua non para o surgimento da cultura oferece a possibilidade de criar os instrumentos, concretos, ideológicos, ou imaginários, que estão nos levando à destruição: morte e vida são dois lados da mesma moeda. Quem vencerá?

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Samuel Franco dos Santos é psicólogo, pós-graduando em Teoria Psicanalítica Fale com ele: samuelpsicologo@yahoo.com.br




   
 
 

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