
06/09/07
Territorialidades indefinidas
para pessoas autônomas e sem cartão de crédito
Eu não escrevo para
você, nem divulgo meu texto, porque coisas do tipo
não se fazem por aqui. Eu escrevo para ela que me
consome calada, no canto da parede, submissa a seu próprio
desejo. Quando a vontade é autônoma, cai-lhe
o sustentáculo do medo de decidir. O domínio
sobre seu corpo e sobre o seu andarilhar é pesado,
a ponto de paralizar qualquer ação voluntária.
É assim que se comporta um nome e sobrenome que pode
decidir por si só. Decidir aonde estar, o que comprar,
o que vestir, para quem dar ou a quem comer. Autonômos
são desprovidos de territorialidade, de geografia,
de mapas. Esses seres independentes, que as linhas das mãos
se desencontram em posições paradoxas, são
despreendidos da rotina e da padronização,
puxados por sua inquietação com a formatação
do mundo. Angústias, sofrimentos frívolos
e passageiros, interrogações, desprezo e ironia
refinada, fazem parte destas pessoas. Como o reformado da
Polícia Militar, Campos (nome de guerra), que conheci
hoje.
Olhei para as cadeiras da sala
de espera, azuis e sem encosto. Todas enfileiradas. No canto
da sala duas poltronas vermelhas, confortáveis. Campos
ocupava uma. A outra, certamente, seria minha. Ele, de 73
anos é figura singular. Gosta de chupar perereca,
faz dieta do sangue e por isso não come uma lista
de mais de 50 itens decorados na ponta-da-língua,
e joga bola todos os fins de semana. Não fuma e nunca
bebeu bebida alcoólica. Me contou ainda que está
pegando a mulher do japonês e meu deu a dica. "Se
algum dia uma mulher de algum japonês quiser que você
coma ela, não deixe pra depois, porque até
o marido dela irá te agradecer. Eles têm o
cacete tão pequeno, como esse polegar meu aqui, que
preferem pedir ajuda para terceiros".
Campos é desprendido,
seja pela idade, seja pela independência que a aposentadoria
lhe proporciona. Está à frente do seu tempo,
mesmo vivenciado o radicalismo da ditadura. Não sofre
porque fala e nem por ter dormido 20 anos em camas separadas,
distante da sua esposa. "Eu tinha minhas mulheres na
rua e aconselhava ela a arrumar homens também e parar
de me incomodar, coisa de gente normal". Eu esperava
a fila andar, ele aguardava a liberação da
sua arma de fogo, apreendida depois de atirar em um ladrão
que o abordou por quatro vezes consecutivas. "Se fosse
na época da ditadura eu podia ter atirado para matar
e o juiz ainda me agradeceria por contribuir com a diminuição
da marginalidade".
Eu sou um imbecil nos conceitos
de Campos. As pessoas que fumam são imbecis.
Penso na fumaça e fico quieto. A fila anda.
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Rodrigo Saturnino é
jornalista, pós-graduando em Comunicação
Pública pela PUC Minas e e tem um blog: www.nossoopiodecadadia.blogspot.com
Fale com ele: rodrigo@obinoculo.com.br
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