Nessun dorma em Modena, ninguém durma. Nem no resto do mundo. Silêncio. Pois a voz do nobre bárbaro, cheio de doçura no escuro de seu olhar, se calou para sempre, quinta-feira, sexto dia de setembro de 2007.

 

18/09/07
Nessun dorma

Ainda não consegui entender realmente o que foi seu passamento. Uma despedida prematura sem nos dar a chance de pedir bis? Um desaparecimento entre um ato e outro sem deixar vestígios? Estará ele ainda de cuecas no camarim, se aprontando, como em seu renitente pesadelo? Ou atrás da coxia a espera de mais uma deixa triunfal? Ressurgirá ele afinal, na aurora, com um brado firme e melífluo? A notícia me alcança à noite, enquanto trabalhava.

Nessun dorma em Modena, ninguém durma. Nem no resto do mundo. Silêncio. Pois a voz do nobre bárbaro, cheio de doçura no escuro de seu olhar, se calou para sempre, quinta-feira, sexto dia de setembro de 2007. Como se atravessasse as cortinas do palco de um recital a que não assistiremos, Pavarotti foi ao encontro do desconhecido, apesar de seu declarado amor à vida. Essa, que é a mais brilhante e incansável diretora de nossas peças e, quem sabe seguindo o conselho de Bernardo Bertolucci, deixa sempre espaço para o imprevisto e o inexplicável.

O tenor Mário Lanza não alcançou igual sucesso em Hollywood e no mundo talvez por não ter o que Pavarotti não sabia bem o que fosse (e que, caso alguém soubesse, deixaria de existir): carisma. Assim como Lanza, muitos outros não conquistaram nosso afeto assim, "no grito". A humildade dos milhares de "grazie" de Luciano ao fim de cada peça e seu olhar interessado para outras culturas é sem dúvida objeto de identificação de muitos de seus fãs. Quando penso na canção folclórica italiana "O sole mio" a única voz que me vem à lembrança é a dele.

Seu sucesso, além do carisma, estava aliado a muito trabalho - no caso, felizmente, uma paixão - e a uma comunhão com a música universal e muitas vezes em favor de causas nobres. Cantou ao lado de Bono Vox do U2, de Elton John, Brian Adams, Queen, Roberto Carlos, com Bethânia e Gal na Bahia, dentre muitos outros artistas. Em detrimento ao estilo e em favor da diversidade e da musicalidade - a "essência" da música. O antigo professor de escola primária era extremamente exigente para com seu desempenho: "- Não há espaço para erros." Vinda primeiramente do cérebro, ou da memória, haveria um espaço de tempo em que ele pensava a nota e aguardava com relativo temor o momento certo de conseguir desferi-la como um tenista desfere um saque. Tendo-a alcançado, então, um júbilo o tomaria por ter vencido mais um segundo da luta entre mente e corpo pela precisão e beleza. Uma luta sadia, que lhe custava muita concentração e cinco quilos a cada recital.

Dentre as obras mais extenuantes, I Puritani, pela sua complexidade de composição, e a Aída de Verdi, pela exigência de extensão vocal. Porém seus esforços são absorvidos pelo frêmito, como o suor pelo lenço branco, ao presenciarmos a elegância com que esse gladiador de finuras conseguia se portar. E ainda sorrir, em meio às nossas lágrimas. Sorrir francamente, apesar do cansaço, como se reconhecesse e compartilhasse de nossa comoção diante do sublime da música, que foi sua vida.

Como dormir após um concerto? Até que o sono venha, há que se ficar lembrando dos momentos, sonhando acordado, voando, apenas. Como se aquela enorme figura de fraque ganhasse asas, pintasse suas mãos e o rosto de azul e começasse a voar e cantar, felicíssimo, pelo céu infinito. Penso que um sonho assim não volta nunca mais.


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Rafael Silveira nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente o processo infinito de aprender a escrever desde os seis anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta, só para o que ama. Aí estão incluídos, além da literatura, música, pintura e cinema (como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou seu "Pretérito Imperfeito", reunião de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com


   
 
 

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