
07/09/07
Entre Tóquio e Salvador, escalas
de uma longa ponte chamada desconstrução
Após oito anos da árdua tentativa wenderiana
de relatar, pela ótica alemã, uma Tóquio
nostálgica e já não existente no documentário
Tokyo-Ga (1985), a diretora americana Sofia Coppola repete
a tarefa e traz a tona sua síntese por meio da ficção
Lost in translation (2003): um Japão sem tradução
Cena
10: Eu, talvez significante Nilmar Barcelos, em
outro significado qualquer, deslocado no tempo e no espaço,
embora ainda dormindo as oito horas diárias habituais,
mas num fuso horário com quatro, talvez cinco, horas
subjetivamente atrasadas, agora em Salvador, num quarto
relativamente espaçoso, morando com duas japonesas,
a uma esquina da praia, me vejo, ora - no espelho embaçado
do armário - cada vez mais peludo e desleixado, ora
- na tela de 17, LCD - na figura daquele quarentão,
também solitário e desencaixado que, por vezes,
também se olha com estranhamento naqueles imensos
outdoors de Tóquio, acompanhado de um copo de uísque
e envolto de um clímax de sedução ocidental.
Ele não sabe, mas em tantas andanças, apostas,
escolhas e mudanças, em certa medida, eu me converto
na figura daquele ator hollywoodiano em plena queda livre
ao mundo do esquecimento. Bob Harris (Bill Murray) sou eu,
embora ele mesmo tenha perdido o seu próprio referencial,
e esta é a adaptação latina, empírica,
visceral, onírica, identitária, do que parcialmente
tenho me tornado a ser nestes Encontros & desencontros
(Lost in translation, 2003).
Não
me arrependo do que fui outrora porque ainda o sou. Alberto
Caeiro. O pastor amoroso.
Uma vez
que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber,
de tempo em tempo, perder-se (...). Friedrich Nietzsche.
Humano, demasiado humano.
Cena
50: Em meio a um conturbado e rotineiro casamento
com uma mulher de nervos a flor da pele e que parece dar
mais importância a cor dos novos tapetes da casa do
que ao rumo que o seu velho casamento (25 anos) está
tomando - lembrando em muito a vida levada pelo casal (Kevin
Spacey e Anette Benning) protagonista de Beleza americana
(American beauty, 1999) -, Bob Harris vê em uma proposta
de trabalho publicitário no Japão a chance
de acumular dinheiro, uma vez que sua a vida como ator estava
em franca depressão, e fugir daquele caos existencial
por alguns instantes. No mesmo passo, a jovem Charlotte
(Scarlett Johansson), então recém casada com
o fotógrafo John (Giovani Ribisi), na flor da idade,
se vê obrigada a acompanhar o marido para uma sessão
de trabalhos também na terra dos olhinhos rasgados.
Ambos reféns do sonho entediante proposto pela vida
média.
As coisas
de supremo valor têm de ter uma outra origem, uma
origem própria – desse mundo perecível,
aliciante, enganoso, mesquinho, desse emaranhado de ilusão
e apetite é impossível deduzi-las! Friedrich
Nietzsche. Para além de bem e mal.
Cena
99: O encontro poderia ter se dado em qualquer
lugar do ocidente, embora seja neste “não ser”
que tudo acabara por se tornar mágico. Na insônia
bêbada de uma não-adaptação ao
fuso horário nipônico, no torpor do uísque
do qual ele mesmo é o garoto propaganda, na sedução
juvenil em demoradas tragadas num cigarro qualquer, ambos
no bar de um hotel, ambos deslocados de suas culturas comuns,
fora do casulo, em outros quadrados que não os habituais.
É mais ou menos como aquele conto moderno, relatado
em um filme qualquer que não me lembro o nome, no
qual duas pessoas, então muito distantes, entram
em contato após uma confusão virtual e, ao
aquietar-se da fumaça, no controlar-se do incêndio,
acabam por se conhecerem e criarem vínculos tão
íntimos, tão comuns, de rios que, embora com
densidades diferentes, corriam e convergiam para o mesmo
ponto. É no encontro de Harris e Charlotte que ocorre
a ruptura daquilo que, mesmo num mundo tão diferente,
era tão igual e monótono. Em Belo Horizonte
havia rotina, até que encontrei a linda “pequena”
por nome Ruptura. Em Salvador é somente uma nova
rotina, até agora sem seu principal elemento: ela.
Um pensamento
visível faz-me andar mais depressa e ver menos, e
ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. Mesmo a ausência
dela é uma cousa que está comigo. E eu gosto
tanto dela que não sei como a desejar. (...) Não
sei o que é feito do que sinto na ausência
dela. Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha pra mim como um girassol com a cara
dela no meio. Alberto Caeiro. O pastor amoroso.
Cena
500: Todo dia e a rotina se torna ritual. O Velho,
abestalhado, quebra a casca ovular e a gema escorre, alaranja
brilhante, do céu. De tão lenta, parece estagnar
o tempo. Espio tudo, manchando os cotovelos na cal do pára-peito.
Abaixo de mim, entre areia e escadaria, tudo alvo, loiro
e esquisito a se mover é alvo de galoardas aquáticas
nos pés em troca de algumas moedas. Os gringos se
emputecem, desejam mais é ficar com a sensação
de maresia pelo corpo até chegarem em suas casas
- gostam do estranhamento, do exótico. Mas o negão
brinca com tudo, enquanto sua barriga cobre o pênis
e a fresta anal sorri, do cu ao cóccix, para o bar
do chinês na Sete de Setembro. Os barcos, estagnados
no vai-e-vem do mar, parecem flutuar sobre um espelho azul
que, vez ou outra, reflete a gema – sempre mais molenga,
lerda, deslizante, como miragem, dias a esconder-se por
detrás de uma nuvem passageira, dias a colidir-se
nas cabeças da Ilha de Itaparica. Limpo os cotovelos
brancos, enquanto o Velho delira decretar escuridão
a parte do mundo e o Prefeito luz artificial para a justificação
dos poderes delegados nas eleições supostamente
democráticas. A japonesa, desdentada, prossegue trocando
os canais da tv e beijando seus gatos nojentos que, na noite
anterior, se divertiam comendo as baratinhas da casa. A
filha se masturba no banheiro, após esconder seu
laptop para que eu não navegasse para outro mundo
deixando o aluguel da espelunca em débito. Sem a
Ruptura, todo dia é dia da rotina tornar-se mítica,
mística, ritual - e isso não deveria soar
diferente para ele no Japão, afinal de contas sou
eu mesmo aquele ator de merda me vendendo por tão
pouco.
Aquele
que galga as mais altas montanhas ri de todas as tragédias
lúdicas e de todas as tragédias sérias.
Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra.
Cena
999: Do outro lado do planeta, vivendo sem muita
explicação, deslocando-se em ambientes nada
familiares, eles mergulham de cabeça naquele “mundo
outro” completamente tomado pelos efeitos do progresso
e da técnica, entre japoneses que desfilam com suas
roupas americanizadas e lojas que produzem suas comidas
falseadas. Sozinhos eles são apenas angústia
e melancolia. Ela, recém casada, no conflito de ter
que viver abandonada em um hotel, envolta de pessoas até
então esquisitas, já que a pessoa mais próxima
que conhece é o jovem marido, que dispensa toda a
sua atenção, força e concentração
no cumprimento de sua agenda profissional. Ele, desiludido
profissionalmente, agora garoto propaganda de uma empresa
de uísque, buscando manter-se extremamente paciente
as futilidades que a esposa grita como importantes do outro
lado da linha telefônica. Mas, juntos, saem do frio
anonimato, se reconhecem como pessoas, são Charlotte
e Harris, são humanos e, por isso, arriscam-se ao
acaso em que se encontram. Significantes que, embora comuns,
ao se encontrarem tornam-se significados, tornam-se ruptura.
A espantosa
realidade das cousas é a minha descoberta de todos
os dias. Cada cousa é o que é. E é
difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
e quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo.
Alberto Caeiro. Poemas inconjuntos.
Cena
1500: A diretora Sofia Copolla (As virgens suicidas/The
virgens suicides, 2000) tem como trunfo a leveza e a simplicidade
de construir uma narrativa que, por si só, corria
sério risco de ser somente densidade e melancolia.
Com clareza, a filha de Francis Ford metaforiza maestralmente
a vida que pulsa em meio aos conflitos, a inércia
e a estagnação, mas sem cair nos extremos
do happy end. Sempre que retornava o dvd, a cena de Harris
e Charlotte cantando em um Karaokê me remetia frequentemente
a cena de outro filme - que, pra variar, não me recordo
o nome - sobre conflitos em harmonia, rodado em um bar belohorizontino
no qual um grande amigo por nome Ruptura nomeou-o sugestivamente
de “Buraco”. A atração existente
entre o experiente Bob Harris e a jovem Charlotte - o reflexo
perfeito da minha relação de irmandade com
outro sujeito que, por filosofia de vida, é conhecido
como “Bucolix” mas se chama, coincidentemente,
Ruptura (Somente pessoas de espírito livre possuem
esse nome. Sorte ou azar conhecer três delas?) - não
é vulgarizada em nenhum momento, revelando a honestidade
límpida de uma relação complementar,
talvez emergencial, providencial, mas que nunca é
relegada à finalidade da união física
dos corpos, seja isso o entrelace de mãos, o beijo
ou o sexo. Isso não ocorre entre ambos. Juntos, independentemente
do lugar, sentiam sangue jorrar de uma veia para outra.
E foi assim
que certa vez, quando precisei disso, inventei para mim
também os “espíritos livres”,
aos quais é dedicado este livro gravemente corajoso
com o título: Humano, Demasiado Humano: tais “espíritos
livres” não há, não havia (...).
Friedrich Nietzsche. Humano, demasiado humano.
Cena
1999: Medo, tensão, apreensão, algumas
lágrimas, o beijo apaixonado apenas em suas memórias,
relegado a segundo plano, abafado no abraço fraterno,
especial, carinhoso e único, em que corações
rasgam peles na busca quase canibal um do outro, escapulindo
reciprocamente entre si, num não saber qual coração
é de quem, dado na troca bêbada de sentimentos
revelados somente a ambos, tão próximos e
agora tão distantes. Em suma, trata-se da estória
de uma relação supostamente sem final feliz,
que flerta com o trágico sem se consumar em tragédia.
É como na cena final de Encontros & desencontros,
em que nem mesmo os protagonistas desse Show (de Truman/
The Truman show, 1998) têm idéia sobre o que
dará no desembocar desses rios mar adentro, embora
os pedaços de concreto da violenta margem de controle
tenham sido, sem medida, lançados ao nada. O que
Bob Harris sussurra ao ouvido de Charlotte, enquanto se
despedem nos últimos segundos restantes, que os telespectadores
só conseguem notar através dos rudimentares
gestos labiais, é o referencial daquilo que, na minha
vinda para a Bahia, sussurrei ao ouvido da minha “pequena”
Ruptura: troca bêbada de sentimentos revelados somente
a ambos, tão próximos e agora tão distantes.
Ao espectador resta o doce gosto de sentir-se lost in translation
(pt. perdido na tradução).
Daquilo
que sabes conhecer e medir, é preciso que te despeças,
pelo menos por um tempo. Somente depois de teres deixado
a cidade verás a que altura suas torres se elevam
acima das casas. Friedrich Nietzsche. Humano, demasiado
humano.
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- O
homem dos mil braços
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Nilmar Barcelos é
uma mentira contada, uma piada de mal gosto, um erro de
roteiro, uma torta reta, uma rota morta, uma grande farsa.
Em partes jornalista, embora o todo gonzo. As vezes feliz,
freudiano sempre. Puramente obsceno. Nietzschiano, mas nem
sempre humano. Escreve todas as sextas no Retalhos Culturais.
E-mail: nilmarbarcelos@gmail.com
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