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Precisamos realmente disso? Esse mundo é realmente muito estranho. Em atitudes simples, como ir ao salão fazer as unhas, vejo o quanto cometemos atos impensados, coisas corriqueiras que fazemos sem nem ao menos saber o porquê. Quem foi que disse que as mulheres devem estar sempre com a unha feita? Chego, cumprimento as pessoas, converso sobre assuntos medíocres e folheio uma revista de beleza, que cumpre eficazmente o objetivo de me mostrar o quanto os reles seres humanos como eu são feios, gordos, mal arrumados e cheios de celulite. Senta-se à minha frente uma menina, de roupas simples e de um ar tão humilde que chega a me constranger. Ela forra uma toalhinha perto dos joelhos e me pede timidamente que coloque o pé direito sobre a toalha em seu colo. Ao mesmo tempo, a manicura que segura minha mão empurra minhas cutículas com aquela espátula medonha me causando uma dor horrível. Eu penso em pedir para ela não me machucar desse jeito, mas fico com vergonha. Não quero demonstrar para todas essas patricinhas loiras de cabelo alisado e esmaltes vermelhos que não tenho costume de fazer as unhas. Enquanto a mocinha humilde lixa meus pesados e aristocráticos calcanhares, percebo que naquele chinelinho rosa e infantil seus pequenos pés não têm as unhas feitas, nem suas sofridas mãos. Tento desesperadamente desviar o pensamento antes que ele se instale de vez, mas não tem jeito. Não consigo evitar a comparação desta cena, na qual sou protagonista, com aqueles filmes de época em que os nobres são banhados e vestidos por mucamas ou escravas humilhadas. E de repente me vejo naquela situação que fere meus princípios, ativa minha comoção e me desperta o pior dos sentimentos: a dó. Meu ataque de piedade ridícula e presunçosa foi interrompido quando a funcionária arrancou um bife do meu mindinho direito. Aquela dor aguda e punitiva foi muito bem vinda para abrandar a culpa que sentia pelos males do mundo. Pude até experimentar um pouco de raiva dessa filha da puta que trata minhas mãos de princesa como um objeto qualquer. Xinguei-a mentalmente e sofri calada. Resolvi, com a consciência aliviada, que não devo me sensibilizar com a situação das empregadas do salão, que dependem de um serviço chato, mal remunerado e até meio humilhante para sobreviver. Definitivamente devo ter dó de pessoas como eu, que na tentativa vã de se parecerem com as belezas vendidas em revistas e televisão, ou mesmo para seguirem alguma convenção idiota, passam desconforto e empregam muito mal o seu dinheiro na insaciável feira das vaidades. Algumas, também como eu, chegam até a sentir uma pequena parcela de culpa pela desigualdade social, no terrível equívoco de se acharem superiores às funcionárias do salão, culpa tal que rapidamente se esvai no primeiro elogio ganhado em alguma festa regada à champagne. É realmente lamentável. Dirigindo-me à recepção,
com as cutículas doloridas e naquela postura meio ridícula
com as mãos levemente abertas e algodões por entre
os dedos dos pés, já havia tomado uma decisão.
Jamais sentiria dó de mim mesma. Jamais sentiria aquela
dor novamente. Nunca mais faço as unhas.
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