
21/08/07
Aamo abaçaí (ou a Lua
que espreita)
1
Resolveu retumbar-se. Explodir em ter-se para si mesmo.
A vontade, quase inesgotável, de tomar uma atitude
o fez tomar esta.
2
(Sozinho)
Paulo: Pensava que encontraria fora de casa o que não
tinha dentro. Pensava que na busca externa, debruçado
em minhas certezas de antes de partir, fosse-me revelado
o real valor do tempo. Sem perceber, pelo contrário,
que o que se transpassava por minhas escuras pupilas era
apenas os olhos do pai. Olhava-me como quem vigia a cria,
na obscura incerteza de perdê-la se não cuidar.
E isso me punha cru, inerte aos meus sonhos. Quando saí
de casa, fugido de toda angústia que me causava ouvir
seus ditos, receitas e conselhos, via também os olhares
omissos do resto da família. Era um sem tanto de
olhares perdidos, envoltos em luz despertando.
3
Fernando: Acorde meu irmão, a hora já acendeu.
4
Fernando: Não cerrei as pestanas. Recordei enquanto
você dormia o que havíamos conversado ontem
à noite.
Paulo: Não pense. A conversa já secou.
Fernando: Faz três anos que saímos de casa
e ontem foi a primeira vez que recordamos as palavras que
sempre quisemos trocar.
Paulo: Não sei do que fala.
Fernando: Todo esse tempo só serviu para nos afastar
ainda mais, meu irmão.
Paulo: Ora Fernando, já não basta os solavancos
que me causou ao lembrar os discursos do pai? Não
vê que esse assunto está terminado?
Fernando: O mundo vinha num inesperado mover-se, não
me culpe pelo que aconteceu.
Paulo: O mundo que você fala não é para
nós, somos filhos desgarrados, bastardos de nossa
terra. Por isso, não me canse com suas palavras,
sonhos, deixe-me dormir.
Fernando: Não é disso que falo. Nossa casa
não era um antro religioso. Se tivéssemos
mais tempo para tentar explicar...
Paulo: Minha vontade agora era de varar os teus dogmas,
teus santos. Era cuspir no rosto do teu Deus tudo que ele
me fez.
Fernando: Isso não é destino, Paulo. Não
há nada predisposto, antecipado. Nosso tempo é
nulo. O que nos sorveu não foi o destino, meu irmão,
esse deus de asas cortadas que só nos dá um
chão seco, duro, uma alameda de vozes em que a certeza
é seu maior canto. O que nos trouxe aqui, Paulo,
foi o acaso.
Paulo: O acaso? Não foi o acaso que, precipitadamente,
arrancou um pedaço de meu corpo!
Fernando: Não recuso nada, mas também não
aceito nada. Você bem sabe disso. Faço aquilo
que quero não me importam as suas podas com olhos
que só vislumbram o previsível, o possível.
A sua peculiaridade física só nos causou problemas.
Paulo: Um corpo torto, aos pedaços, rasgado como
uma folha pode ser um problema, mas não uma fossa
de perdões, indulgências, insignificâncias.
Não sou um vaso podre que num simples toque pode
estilhaçar-se em pedaços de pena, amparos.
Ainda estou vivo meu irmão!
Fernando: Essa sua insurreição só lhe
causa mais problemas.
Paulo: Como poderia viver em meio àquela família
sendo observado como um bicho, uma aberração!
Foi pelos olhos, de dentro daqueles raios-verdes do pai,
que sentia a desaprovação de todos. Era como
se o membro que me faltava fosse para eles o bastante para
me tornar um inculto, um baldado, um filho partido!
Fernando: Não é necessário construir
um castelo de afirmações para mim. Eu estava
lá. Com uma tranqüilidade que ameaçava
os meus desejos, meus sonhos, mas estava lá.
Paulo: Estava... no começo como quem observa, erradio,
de longe, uma iniqüidade, mas que não tem a
coragem de se levantar e gritar sua desaprovação
diante daquilo tudo que vê. Por isso, hoje vim saudar
a despedida, meu irmão, roer a borda do seu acaso.
Fernando: Não me fale
dessas coisas. Você tem conhecimento que era como
se tivesse em uma das mãos, o sonho, as lembranças.
Na outra, a dor da despedida. E entre as duas, o tempo.
Paulo: Não me vazam por esse cancro as mesmas dúvidas.
O que me resta são retalhos, tiras daquilo que buscava,
mas que hoje já costurei com as agulhas da tradição.
Como poderia uma família como a nossa ter um filho
enfermo, acidentado, o que pensariam nossas irmãs,
vendo um homem incompleto trançar pela casa? Como
poderia a mãe sentir aquele pedaço de carne
que me falta todos os dias? Sim, porque ela sentia! Escorria
pelos olhos aquela água de pena, dó. E o pai?
Carregaria aquela cruz pelo resto de sua bruta e tradicional
vida campestre.
Fernando: Sim, mas foram os mesmos olhos do pai que atinaram
para o seu dilúvio, Paulo, sua atrofia, seu rasgo
de consciência.
Paulo: Meu caco foi este. Minha desmesura foi esta. Não
quero discutir os motivos, essa razão que tanto fala
arde-me mais que esse sol a pino que nos encolhe agora debaixo
dessa árvore. Deixe-me descansar, vamos dormir.
Acuba
5
(ao amanhecer)
Paulo: Fernando, acorde. Observe. Quem são aquelas
pessoas ao longe?
Fernando: Onde?
Paulo: Lá, debaixo daquela oliveira.
Fernando: Não sei, não consigo ver com clareza.
Paulo: Não acredito.
Fernando: Em quê?
Paulo: Não percebe?
Fernando: Você me irrita Paulo, diga logo.
Paulo: Nunca pensei que pudesse vivenciar isto.
Fernando: Diga de uma mais vez o que...
Paulo: Somos nós!
Fernando: Como?
Paulo: Veja, somos nós debaixo da árvore.
Fernando: Não seja louco, isso é impossível.
Paulo: Então mire meu irmão, aproxime-se mais
um pouco.
Fernando: Curioso... Parecem-se mesmo conosco.
Paulo: Não se parecem Fernando. São. Olhe,
estão embaixo de uma oliveira, assim como esta.
Fernando: É verdade. A copa é bem parecida,
assim como o gramado em volta.
Paulo: E as pedras, a fogueira que fizemos à noite,
os frutos... Fernando!
Fernando: O que foi?
Paulo: As oliveiras, as pedras, a fogueira, não se
parecem com as daqui, elas são as daqui, são
as mesmas!
Fernando: Agora você é que me parece ridículo.
Paulo: Não, compare. A altura da copa, a colocação
das pedras, o lugar onde a fogueira foi feita e onde nos
deitamos à noite. É tudo idêntico.
Fernando: Começo a duvidar de sua sanidade. Eles
apenas se assemelham a nós, vestem roupas parecidas
e têm alturas equivalentes às nossas, assim...
Paulo: Venha até aqui.
Fernando: Ora Paulo, não seja estúpido, o
que você vê são somente...
Paulo: O que foi?
Fernando: O homem curvo, de cabelos grisalhos e andar manco
acendeu duas fogueiras. Mas ainda é dia.
Paulo: Exatamente como você o fez a noite passada.
Além disso, suas características físicas
são idênticas às suas. Estranho, aquela
penumbra causada pela árvore não é
sombra. Parece-me... É noite! Fernando, embaixo da
árvore é noite.
Fernando: Quem é o outro que está com ele?
Não acredito. É mesmo você, meu irmão!
Paulo: Vamos, quero ver o que se passa.
(saem em direção aos dois homens)
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Leonardo Rocha
é jornalista, ator e cineasta. Fale com ele: E-mail:
nadorocha@yahoo.com.b
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