13/03/07
O real e ficção em Nove Noites

Nove Noites, de Bernardo de Carvalho, é uma narrativa que se apresenta como um misto de romance - reportagem e romance - policial; uma escrita que se apóia numa obsessão investigativa, na tentativa de averiguar fatos ocultos, na busca incessante pela verdade. O texto é intrigante, promovendo a inquietação e a desconfiança de seus narradores e leitores. O principal assunto do livro refere-se a um fato real: o suicídio do antropólogo norte-americano Buell Quain, entre os índios Krahôs, em 1939, no Brasil. Esse caso, ainda tendo sido um tabu para a antropologia brasileira, foi logo esquecido, mesmo porque não foi difundido para o público. A partir de um artigo de jornal, ao tomar conhecimento da história por acaso, o narrador do romance decide investigar as razões do suicídio, 62 anos depois.

A história trágica desse promissor antropólogo, perdida nos anos e na memória, torna-se o ponto de partida da narrativa de Bernardo de Carvalho. Como recurso literário, o autor projeta em seu texto fotos e personagens da década de 30, retratando pessoas reais e/ou imaginárias, localizadas em espaços geográficos delimitados. Tendo como base o caso de Buell Quain, Bernardo vai entrelaçando realidade e ficção, histórias mais ou menos documentadas, numa visão parcial. Diante da impossibilidade de apreender o real na sua totalidade, a literatura, em sua estruturação ficcional, ganha o território do incerto e do inquietante, do que ainda não foi.

O romance é uma narrativa paranóica por apresentar um jogo estonteante entre o falso e o verdadeiro e por ser uma escrita alucinada, com idas e voltas e que se direciona para frente ou para trás, numa acumulação interminável de narrações que se prendem às figuras de testemunhantes que relatam o absolutamente verdadeiro ao mesmo tempo o falso e o inverossímil. O que se presencia são textos que se preenchem ou não, e o narrador torna-se o intermediário que conecta os segmentos vazios e ilegíveis desses textos. Na esteira de uma linguagem multifacetada, o fragmento é o protagonista que atravessa o discurso do ontem e do hoje. Juntar fragmentos documentais pressupõe elos e são estes que constituem o discurso do “outro” que se dilui nas frestas deixadas ou encontradas.

Essa narrativa enviesada que segue os vazios deixados pelos ausentes, em que os mortos tornam-se modelos para os vivos, perturba o leitor em permanente deslocamento diante das buscas. O leitor, também detetive, ocupa um centro privilegiado na compreensão do sentido único para o texto. Esse, interpelado pelo autor, vê o texto, lendo-o como uma carta pessoal com suas inerentes interpretações críticas.

Nove Noites é uma prosa escorregadia, cheia de ciladas para o leitor. É um romance que elege uma escrita alucinada que se divide em duas narrativas que se iluminam e não se completam, deixando quem lê com a sensação de que não é possível acreditar em mais nada e nem, até mesmo, no próprio livro. A verdade parece estar mesmo perdida e tudo se projeta como simulacros de realidade em um texto enigmático, com tempos que coexistem, num ritmo quebrado de um processo não linear e em espaços que se entrecruzam. Assim, resta a crença de que, como o próprio Bernardo enfatiza, “as histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de interpretá-las”.


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João Paulo Teixeira é jornalista, continuísta, admirador e estudioso de cinema, pós-graduando em “História da Cultura e Arte”, não necessariamente nessa ordem. Já participou de 20 filmes, sendo 19 curtas (18 como continuísta e um como diretor) e um longa como assistente de figurino e produção. Acredita que a continuidade é responsável direta pelo olhar mais crítico para o fazer e analisar obras cinematográficas. Além disso, é colaborador da peça Atrás dos Olhos das Meninas sérias, com estréia em março. É redator da coluna TRAVELLING no site Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br). Escreve todas as sextas-feiras. E-mail: jpteixeiras@gmail.com

 
 

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