O busão foi-se e os jovens malabaristas forasteiros continuaram lá, entretidos com bolas voadoras e claves que rodam bonito no ar. Um sujeito aproximou-se. Certamente nunca tinha escutado I want you (i want you so – she´s so heavy e por que não: she´s so heavy e sometimes cold?
 



13/08/07 - Segunda-feira

Cenas de um filme esquisito e real


1. Externo. Rua da Esperança, esquina – dia.

Avistou de longe. Na esquina. Parado. A carrocinha cata-papel ao lado, estacionada. Roupas meio sujas, chinelo havaiana surrado, pés imundos, agora descalços; camiseta do Flamengo, década de 90. Uma raridade, cê precisa ver! Lia notícias da cidade. Lia, como se ler soubesse. E a carrocinha ao lado, quieta; o cachorro também, sem dar um pio, deitado à beira da sarjeta, com a língua de fora, a observar o movimento.

Passou um carro, passaram quatro, cinco. Passou a fome também, a pé, descalça e vendendo balinhas de goma. Uma delícia que só vendo! Puxou o cigarro e a caixinha de fósforos. Acendeu, ficou pitando como se cachimbo fosse; cuspiu de lado, resmungou.

2. Interno. Casa do Ramon Coraçãozinho – sala – dia.

Ouvia de dentro da casa a TV, em frente onde estacionara a ler o jornal, sentado na esquina (essa que acabei de contar, mas não a paranóia delirante). Dentro da casa alguém acabara de ser feliz. Um sonho realizara-se, concretizara-se. Quase nem acreditava e quase comia todos os amendoins dispostos na vasilinha à mesa de centro. (Amendoins que são, além de afrodisíacos - diz o mito - também ricos em resveratrol, substância que retarda o envelhecimento). O sonho real. Como era bom realizá-los; como era ruim acordar deles também. Já não havia mais coloridos e havia também, agora, coisas chatas dominando insistentemente a cabecinha. Nuns dois ou três dias comentara com as colegas. E agora já teria que mudar o discurso, caíra um tombo jogando. Dolorido. Ouvia a Nico e sua bela voz de These Days. Nem tomara café. Passara um pedacinho que na verdade era um pedação da tarde deitado, tentando. Voltara melhor, mas ainda sem poder pensar que o sonho não era mais sonho. E agora (era o que restava, mas Ramon Coraçãozinho não sabia) contentar-se-ia com pães de queijo na fornalha recheados com requeijão e o Abbey Road ecoando pela casa vazia.

3. Meio longe dali – centro da cidade: Rua das Almas Felizes – noite.

Escureceu. Dois jovens forasteiros malabaristas brincavam com seus objetos; nos ônibus pessoas retornavam do ganha pão, ouviam uma nova bela canção. E o motorista só matutava chegar ao lar e devorar a marmita. Depois, de sobremesa, sua garota. Que maravilha de lingerie cor de sangue. Que maravilha de bunda e coxas grossas, roliças. Mas não a sua sobremesa, recordava as páginas de revista de mulher pelada.

- Boa noite seu motorista!

Disse: Boa noite.

Voltou. Acelerou. O busão foi-se e os jovens malabaristas forasteiros (isso significa apenas que eles eram de outra cidade) continuaram lá, entretidos com bolas voadoras e claves que rodam bonito no ar. Um sujeito aproximou-se. Certamente nunca tinha escutado I want you (i want you so – she´s so heavy e por que não: she´s so heavy e sometimes cold?). Possivelmente. Estabeleceu diálogo. Outro sujeito também chegou. Também estabeleceu diálogo. Quis fazer malabares com as bolinhas. Ficou umas meia hora tentando, derrubando, mas não largava-as. Deixou os forasteiros malabaristas encabulados. Mais encabulado ainda estava o Ramon do Coraçãozinho da outra estória, pensando em seus sonhos reais, que já não eram mais coloridos. Depois de cento e três tentativas mal-sucedidas, finalmente conseguiu fazer as bolinhas voarem. Passou um minuto. Saiu um pouquinho, caminhou, uns trinta e sete passos e não voltou nunca mais. Não pediu licença ao sair. O outro sujeito ficou lá, com dor no pescoço, incomodava. Passou uma ambulância, o sujeito que ficara, correu lá ver. Voltou apressado para perto dos malabaristas forasteiros e perguntou:
- Sabe o sujeito que estava aqui tentando fazer malabares com bolinhas?
Balançaram a cabeça.

- tá lá estirado, sofreu perfuração lateral crônica que atingiu as costelas e o pulmão; a outra afetou artérias e o coraçãozinho. Usaram facas Quinzo. Vamos lá ver?
Balançaram a cabeça negativamente.
Ficaram de cara.

4. Sala. Som ligado, whisky com gelo – tarde.

Refletia. Alegrara-se com a parte alegre da música You never give me your money. Nem desistiria e ainda teria algum tempo pela frente. Só desconfiava se isso era vantagem. Sabia que quando ingressava na segunda estância, que não a primeira, que não aquela física, que não aquela superficial, que não aquela estética, era fóda. A segunda, aquela na qual Oscar Wilde diz: “a beleza, a beleza verdadeira termina onde começa a intelectualidade”, preocupava. Bastante.

Agora, nesse momento de fossa, não queria ir às compras; desejava que uma fã ensandecida entrasse pela janela do banheiro e dissesse coisas loucas como: voltei do leilão de abelhas e trouxe uma linda pra você! Quer ver, ela até sorri!?
Ou então lhe desse um ácido de presente e depois fizesse crer que aquele sonho nem era tudo aquilo, embora soubesse que era tudo aquilo; que só queria ficar ali perto dela. Já bastava. É. Exatamente.

Deu outro trago no whisky, descruzou as pernas. Foi à janela. Avistou um tipo sentado, lendo jornal. Ao lado a carrocinha cata-papelão e um cachorro com a língua de fora. Estranhou. Reconheceu que daria uma boa fotografia. Mas as frases no jornal chamaram mais atenção:

Quem tiver de sapatos não sobra! Não vai sobrar!

O terceiro mundo vai explodir!

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Gabriel P. Ruiz é jornalista, reside em Bauru-SP, gosta de rock ´n roll e vive usando a desculpa de entrevistar as bandas para conhecê-las. É editor da Revista Ponto e Vírgula da web rádio Unesp Virtual, onde também produz o programa On the Rock!. Mais no seu blog (wwwggabrielruiz.blogspot.com). Escreve todos os domingos. E-mail: gabrielpruiz@yahoo.com.br


   
 
 

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