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31/07/07
Sou interessante. Quando saio pelas ruas, alguns me jogam pedras, porém outros me admiram. Querem me pegar – fujo. E, mesmo com meu total silêncio, acabo arrumando briga. Incomodo por existir. Não me contenho. Arrepio.Avanço. Mas também levanto o rabo em uma lenta dança de hélice e me torno macio, carinhoso. Não escondo quando estou feliz: meu corpo me entrega, soltando sua particular melodia. Sou sincero. Eu amo, amo muito, embora nem todos acreditem. Só eu sei o tamanho da pulga que me pica. Faço sexo para doer nos outros. Me dou bem com loucos. Não é verdade que só penso em comida ou na casa onde moro: penso em afagos como se isso fosse natural – afagar e também arranhar, se estiver incomodando. Sou orgulhoso, arrogante, mas também sou capaz de passar humildemente por entre as pernas dos seres humanos, mesmo sabendo que estou em vias de levar um safanão. Às vezes faço isso porque estou com fome. Alguns se comovem, outros me chutam, mas não ligo – só não apanho duas vezes da mesma pessoa. Sou nobre e independente, roubo só
para comer. Sou esperto e intuitivo. Intuo que a lata de lixo
é melhor que essa janela. Por isso mais cedo ou mais tarde
me jogarei dela. Mas farei isso só para ver. Minhas pupilas
finas e retas são lâminas que cortam os pontos cegos
do dia. Meus olhos semicerrados passam o dia admirando os estranhos
corpos que se movimentam pelo espaço. O que fazem dentro
do que é meu? Sou o dono do tempo. Faço o que quiser
com ele. Sou o verdadeiro filho de deus. Sou do demônio.
Sou dos espíritos. Sou da vida. Já me queimaram
em fogueiras e continuo aí, porque gosto de sol, gosto
de estantes, de papel, de livros, gosto de coisas eternas: sou
tão vivo que sei que Porque sou festejado pelos poetas
e guardo tumbas de faraós, ao mesmo tempo guardião
e imperador da eternidade. Porque enxergo no escuro. Porque brinco
com minhas presas antes de consumi-las. Não por crueldade,
mas para que vivam bons momentos, antes
que a natureza estenda minhas garras sobre elas. É que
viver demora e preciso me divertir. É que a janela é
alta e, para fingir que não sou perfeito, de vez em quando
eu caio dela. Por isso tenho gestos sensuais e o corpo flexível
para agüentar, com a mesma elegância, as minhas longas
sete vidas. Pularei, cairei, me fingirei de coitado, me afastarei
dos abismos. E logo depois darei uma espreguiçada e um
bocejo. Amanhã será mais um dia como outro qualquer,
mais um daqueles dias em que o tédio não CHRISTIANE TASSIS é autora
do romance Sobre a Neblina (Língua Geral, 2006) e escreve
roteiros para cinema e TV. (http://basicamenteisso.zip.net) |
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