31/07/07
NÃO CAÍ: ERREI O PULO

Christiane Tassis

Sou interessante. Quando saio pelas ruas, alguns me jogam pedras, porém outros me admiram. Querem me pegar – fujo. E, mesmo com meu total silêncio, acabo arrumando briga.

Incomodo por existir. Não me contenho. Arrepio.Avanço. Mas também levanto o rabo em uma lenta dança de hélice e me torno macio, carinhoso. Não escondo quando estou feliz: meu corpo me entrega, soltando sua particular melodia. Sou sincero. Eu amo, amo muito, embora nem todos acreditem. Só eu sei o tamanho da pulga que me pica.

Faço sexo para doer nos outros. Me dou bem com loucos. Não é verdade que só penso em comida ou na casa onde moro: penso em afagos como se isso fosse natural – afagar e também arranhar, se estiver incomodando. Sou orgulhoso, arrogante, mas também sou capaz de passar humildemente por entre as pernas dos seres humanos, mesmo sabendo que estou em vias de levar um safanão. Às vezes faço isso porque estou com fome. Alguns se comovem, outros me chutam, mas não ligo – só não apanho duas vezes da mesma pessoa.

Sou nobre e independente, roubo só para comer. Sou esperto e intuitivo. Intuo que a lata de lixo é melhor que essa janela. Por isso mais cedo ou mais tarde me jogarei dela. Mas farei isso só para ver. Minhas pupilas finas e retas são lâminas que cortam os pontos cegos do dia. Meus olhos semicerrados passam o dia admirando os estranhos corpos que se movimentam pelo espaço. O que fazem dentro do que é meu? Sou o dono do tempo. Faço o que quiser com ele. Sou o verdadeiro filho de deus. Sou do demônio. Sou dos espíritos. Sou da vida. Já me queimaram em fogueiras e continuo aí, porque gosto de sol, gosto de estantes, de papel, de livros, gosto de coisas eternas: sou tão vivo que sei que
tenho sete vidas pela frente. A janela é meu abismo. Sentado no parapeito, olhando a lua, o nada, os transeuntes, sinto imenso desprezo e desejo por tudo isso. Porque sou oito, sou oitenta. Meu corpo sentado tem a forma deste número infinito. Sou um e mais sete ocupando o mesmo espaço. Por isso nem sempre me agüentam em minha insuportável leveza. Sou bonito. Jamais causarei indiferença em uma pessoa.

Mas não atendo pelo nome. Não deixo que me denominem. Sou curioso e, ao contrário do que dizem, a curiosidade não me mata: me faz viver. Uma vez pulei e quebrei o canino, me incomodava carregar este nome. Agora apenas o arreganho, partido, sem medo: sou sem-vergonha. Uma vez fugi de casa e voltei todo arrebentado. Uma vez fiquei cheio de óleo. Que nojo, logo eu que sou tão limpo. Sou autolimpante. Sou especial. Minha especialidade é sobreviver. Ao contrário do vizinho de raça humana que vejo todas as noites pela janela ensaiando para pular. Coitado: ele apenas cospe. Eu, pela minha natureza, terei que tentar sete vezes - oh, como é cansativo morrer. Por isso permaneço vivo. Porque durmo sem precisar de remédios.

Porque sou festejado pelos poetas e guardo tumbas de faraós, ao mesmo tempo guardião e imperador da eternidade. Porque enxergo no escuro. Porque brinco com minhas presas antes de consumi-las. Não por crueldade, mas para que vivam bons momentos, antes que a natureza estenda minhas garras sobre elas. É que viver demora e preciso me divertir. É que a janela é alta e, para fingir que não sou perfeito, de vez em quando eu caio dela. Por isso tenho gestos sensuais e o corpo flexível para agüentar, com a mesma elegância, as minhas longas sete vidas. Pularei, cairei, me fingirei de coitado, me afastarei dos abismos. E logo depois darei uma espreguiçada e um bocejo. Amanhã será mais um dia como outro qualquer, mais um daqueles dias em que o tédio não
me derrotará.

CHRISTIANE TASSIS é autora do romance Sobre a Neblina (Língua Geral, 2006) e escreve roteiros para cinema e TV. (http://basicamenteisso.zip.net)
Fonte: Suplemento Literário Julho/07

 
 

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