
19/09/07
O feminino e a anorexia
A anorexia apresenta-se hoje
como uma das patologias típicas deste século.
À primeira vista ela veste a máscara de um
mal-estar social, ou seja, mulheres jovens presas mediante
a um ideal de magreza imposto pela mídia. Cultura
da imagem, que impõe a essas mulheres, conceitos
e valores sobre a estética onde o normal e o patológico
se confundem apresentando fronteiras cada vez mais difusas.
Ideal feminino de magreza que desafia a vida.
O objetivo deste novo trabalho
textual é pontuar alguns segmentos desta patologia
no qual a psicanálise se interessa delimitar por
ser uma nova forma de sintoma na atualidade. Com isso, Freud
em o Mal estar na civilização
(1929) destaca que nenhum movimento social exerce sua força
a menos que encontre respaldo em poderosos subsídios
inconscientes. A sociedade e a cultura podem provocar a
emergência - em forma de desajustes - de aspectos
mal constituídos em nossas estruturas psíquicas,
já que somos seres de incompletude, um falta-a-ser.
Aqui, uma leitura crítica
da psicanálise é muito bem-vinda para ressaltar
o aspecto mal constituído ou inexistente
do feminino em torno da questão fálica da
castração e da inveja do pênis. Sustentando
essa abordagem, a psicanálise tornou-se cúmplice
de um projeto civilizatório que se afirma pela exclusão
da feminilidade, pois, a teoria sexual, ao menos em Freud
e Lacan, diz que a relação entre os sexos
é fundamentada a partir da referência ao sexo
masculino, "onde não existe propriamente uma
diferença, mas sim pares de opostos que giram em
torno da lógica fálica". Enquanto na
teoria freudiana o lugar oferecido à mulher é
o de um sentimento e de uma posição de inferioridade,
na teoria lacaniana, a mulher aparece como inacessível,
inexistente, ou não simbolizável. Em ambos,
o feminino é um déficit, uma negatividade.
Se não fossem esses
aspectos mal constituídos ou excludentes do feminino
será que as anoréxicas existiriam? Ou, pensando
melhor, ser anoréxica revelaria de fato a inexistência
de um significante que represente a mulher, segundo a psicanálise?
No entanto, o que pode ser
colocado em questão é que a abstinência
alimentar da anoréxica nos remete à abstinência
de todo o desejo. São nestas condições
que estas mulheres se apresentam à psicanálise.
Na escuta clínica a anorexia aponta para duas vertentes,
uma enquanto estrutura, que implica um buraco no corpo,
e outra como defesa anoréxica que traz um contra-investimento
do corpo erógeno. Lacan nos ensina que a anorexia
se situa ao lado estrutural da histeria, porém recorre
à recusa enquanto artifício anoréxico,
ou seja, ocorre uma recusa do prazer e este se faz escudo
do desejo. O que a anoréxica evita é se defrontar
com a falta e neste sentido ela recusa o alimento ou come
nada, mantendo desta forma o desejo encoberto, uma recusa
do desejo. O comer também pode ser um revelador do
desejo encoberto quando retira do alimento o caráter
de necessidade, produzindo pela falta (de alimento) a falta
necessária para demandar amor e desejar. Lacan A
direção do tratamento (1958) situa a
anorexia enquanto paradigma clínico que especifica
a disparidade entre a satisfação da necessidade
e a satisfação do pedido de amor. É
na medida em que a criança é alimentada com
mais amor que recusa o alimento e usa a sua recusa como
um desejo (anorexia mental).
Para Freud Estudos sobre
a histeria (1893), a magreza decorrente da restrição
alimentar era entendida como um sintoma conversivo e, portanto,
estaria claramente ligada à histeria, não
podendo se separar da estrutura histérica. A relação
estabelecida entre a anorexia e a histeria se fortalecia
e se justificava pela intensa carga afetiva e manifestações
no corpo, que eram naquela época os principais meios
através dos quais as histéricas evidenciavam
seu sofrimento. De acordo com a hipótese freudiana,
o excesso de afeto se transformava em repulsa e era deslocado
para os alimentos que passavam então a serem evitados.
A anorexia eclodiria no período pubertário
e viria denunciar um conflito, em que a aversão à
sexualidade remeteria à idéia de repulsa e
à perda da libido (similar a perda objetal presente
na melancolia), que em última instância ocasionaria
a perda do apetite, constituindo-se, portanto, para ele
num distúrbio oral.
A psicanálise também
tem discutido o tema voltando a sua atenção
para a cultura. Na referência de que estar na
moda é uma forma de existir o Outro, já
que a moda e a estética vêm velar o mal-estar
do momento. O corpo esquálido transgride porque nada
come e, ao se apresentar, a anoréxica fere a visão
do outro, nas passarelas da vida causa encantamento
e assombro nos consultórios. Olhar e ser olhado marca
uma construção metafórica do sujeito.
Um corpo que encanta e amedronta simultaneamente. Por esse
ângulo, a anoréxica, mais do que envolvida
em sua luta por um ideal de beleza da época, é
aquela que diz do retorno da verdade recalcada pela sociedade
consumista e globalizante do mundo atual. Sociedade que
prioriza a ética da satisfação plena
e não a ética do desejo. Ela é aquela
que expões um gozo resistente a toda convivência
social, que diz ao Outro moderno que, apesar de tudo que
ele possa oferecer-lhe de mais evoluído, não
pode satisfazê-la. Um exemplo disso, é o sujeito
que diz aos pais (aqueles que procuram tampar a falta ou
angústia que o desejo dos filhos lhes causam, oferecendo-lhes
objetos de consumo, dinheiro, cartões de crédito
etc.) que objeto algum que possa ser consumido cala o desejo.
Assim, não comendo
(oralidade) e se apresentando (escopicamente) como nada,
a anoréxica tem a intenção de cavar
uma possível falta no Outro com seu desaparecimento.
O nada aparece como uma tentativa de uma pseudo-separação
do Outro, o corpo se consome para abrir uma falta no Outro
sem garantias. Apesar de, aparentemente, situar-se no horizonte
do descarnado, esse corpo esquelético, cada vez mais
magro e fraco, pode trazer consigo uma marca fálica,
um valor de troca nas relações com o Outro
que pode ser a sua salvação. Ao presentificar
o nada através de uma recusa generalizada, o sujeito
se torna mestre da onipotência, cabe apenas a ele
fazer-se viver ou não. "A partir daí,
é ela (a anoréxica) quem depende por seu desejo,
é ela quem está à sua mercê,
à mercê das manifestações de
seu capricho, à mercê da onipotência
de si mesma" (Lacan, 1956-57).
Segundo Lacan (1958) a anorexia
pode nos ensinar que é nela que se apreende,
como em nenhum outro lugar, que ódio retribui à
moeda do amor, mas onde a ignorância não é
perdoada. De qual ignorância se trata? Parece
que podemos pensá-la pelo viés do Outro primordial
(mãe ou quem cuida), o qual, ao dar o que tem para
a criança ou sujeito, é um ignorante sobre
o desejo, sobre um não querer saber do que é
faltoso, o que leva ao ódio e acaba por colocar o
Outro na mira da destruição. Do lado do sujeito,
também é possível pensar que seu oferecimento
para completar o Outro, que seu pacto com o Outro fundamental
que o coloca na posição de ser o falo, acaba
por mantê-lo em condição de certa ignorância,
em relação ao objeto nada do amor, pagando
o preço da relação mortífera
com o ideal. Não se trata, então, do ideal
de ser tal ou qual estrela de TV ou cinema, mas, sim, de
ser tal qual o ideal materno.
Éric Bidaud em Anorexia
mental, ascese, mística (1998) comenta que
a relação estabelecida entre mãe e
filha assume um caráter incestuoso e dominador, fato
que impede esta filha de ser penetrada pelo
desejo paterno (o que lhe permitiria entrar na conflitiva
edípica). Nas suas palavras, a mãe,
não olhando para o lado do pai, não permite
à sua filha ter acesso a este e a retém num
entre-dois fascinante, uma aliança de domínio.
Freqüentemente a figura paterna da anoréxica
é descrita como ausente ou inexistente em sua função,
é também desqualificada pela mãe e
permanece assim, fazendo com que a relação
mãe e filha perdurem. Este desejo paterno fracassado,
será encenado por ocasião da entrada da menina
na adolescência, momento em que, traumatizada
pela puberdade, pelo apelo de tornar-se mulher, terá
de re-significar a conflitiva e o enlace materno. Não
re-significando essa relação mãe-filha
de forma satisfatória, essa ninfa menina poderá
vir a usar seu corpo de forma mortífera tornando-se
uma anoréxica em potencial.
Desta forma, cabe ressaltar
que, o que dificulta o tratamento médico a estes
sujeitos, é a recusa da anoréxica em se reconhecer
doente. Por isso, é extremamente importante que a
família esteja atenta aos sinais. Quanto ao tratamento
focado ao profissional da área de psicologia, também
pode ser difícil o tratamento, pois a sua entrada
interrompe essa relação dual, representando
um terceiro atuante. E quanto ao paciente, a tarefa seria
alcançar a estabilização de sua auto-imagem,
sentindo que pode ser capaz de dar a si mesma um pouco de
amor que experimentou em sua relação com a
mãe e começar a desejar ser mulher, ou seja,
ser um sujeito desejante.
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Eduardo
Lacerda é psicólogo clínico,
pós-graduando em psicanálise pela PUC Minas,
interessado no estudo dos sintomas contemporâneos,
um curioso que busca entender as implicações
do inconsciente na vida singular dos indivíduos pós-modernos.
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