O brincar é o espaço no qual se pode observar a coordenação das experiências prévias das crianças, através da ativação da memória e aquilo que os objetos manipulados sugerem ou provocam no momento presente.

Reprodução da Tela: Magali e Mônica de Rosa e Azul. 1989, Acrílica sobre tela, 115 x95 da Série História em Quadrões de Maurício de Souza.

Referência: Auguste Renoir em Rosa e Azul.

 



05/09/07
A criança e o brincar

Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura, uma vez que transmitem tradições espirituais, manutenção de ritos e costumes, conservação das técnicas, do patrimônio (dentre outros), presidindo os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, constituindo-se como a primeira formação educacional de qualquer ser humano, e, portanto, como a primeira instituição da qual fazemos parte.

Uma criança ao nascer, é acolhida por uma família que o protege da angústia proveniente da asfixia do nascimento, do frio, ligado à nudez do tegumento e ao mal-estar labiríntico que corresponde à satisfação do infante. Tal desamparo, está diretamente ligado a uma insuficiente adaptação à ruptura das condições do ambiente e de nutrição que constituem o equilíbrio da vida intra-uterina. Com isso, tudo o que constitui a unidade doméstica do grupo familiar, torna-se para o sujeito, objeto de uma afeição distinta daquelas que o une a cada membro deste grupo.

A mãe, peça fundamental para o desenvolvimento do bebê, o preserva de um abandono que para ele seria fatal, quando o amamenta, abraça e o contempla, recebendo e satisfazendo o mais primitivo de todos os desejos. No entanto, a criança se desenvolve e, mediante ao seu amadurecimento, ela passa por um processo fundamental para a sua constituição enquanto sujeito: a castração, vivenciada durante o Complexo de Édipo, momento em que uma lei se insere como forma de repressão educativa, colocando-se como obstáculo à realização de suas pulsões, criando um recalcamento das tendências sexuais, que permanecerão latentes até a puberdade e uma sublimação da imagem parental que perpetuará como um ideal representativo.

Porém, essa passagem que visa à constituição da subjetividade do sujeito não é uma fase tranqüila, é uma fase de desafios, que deixa(m) a(s) sua(s) marca(s) mediante como foi introjetada ou não a lei paterna. E, uma das formas que a criança usa como artifício para comunicar o que ocorre em seu mundo interno, o que pensa e sente, é através do brincar.

O brincar é o espaço no qual se pode observar a coordenação das experiências prévias das crianças, através da ativação da memória e aquilo que os objetos manipulados sugerem ou provocam no momento presente. Através da repetição daquilo que já conhecem, por meio da imitação deferida, atualizam seus conhecimentos prévios para compreendê-los e ampliá-los.
O brincar constitui-se dessa forma, em uma atividade da criança, baseada no desenvolvimento da imaginação e interpretação da realidade, representando uma forma privilegiada de expressão infantil e implicando na constituição do ser como sujeito e sua inscrição na ordem simbólica e na cultura. A criança, quando brinca, manifesta em seus desenhos, sonhos, relatos e jogos, um discurso a decifrar. Brincando, a criança aprende as primeiras noções sobre os direitos alheios e a sociabilidade. O ego se estrutura e fortifica, fazendo com que a criança aprenda a competir.

Todos os brinquedos são educativos. Não o brinquedo em si, mas o jogo em que em torno dele a criança executa. A criança quando brinca, modifica a realidade ou repete fatos dolorosos a fim de libertar das tensões ou pressões demasiadamente intensas. O brincar é um processo consciente e ativo, podendo manifestar-se de duas formas, corrigindo a realidade ou facilitando a elaboração (repete suas vivências, tentando elaborá-las).

O momento em que uma criança mergulhada na linguagem é por ela tomada, instaurada na condição humana, é representado na teoria psicanalítica, por um momento de jogo. Freud (1976), estabelece a diferença entre o brincar e o fantasiar da criança, afirmando que no jogo, a criança, embora catequise seu mundo de brinquedo, o distingue perfeitamente da realidade e gosta de ligar seus objetos e situações imaginadas às coisas visíveis e tangíveis na realidade.

Pode-se perceber a articulação no brincar de três vertentes: imaginária, simbólica e real. Para Freud, o jogo infantil, vislumbra o desejo que não vai ser satisfeito e transforma a realidade penosa. O jogo é resposta: resposta do real. Vinculado à constituição do sujeito, o jogo torna-se o protótipo de uma atividade simbólica, e sua interpretação está na articulação da ação, com os vocábulos que a acompanham.

Para Freud (1906), no período em que a criança brinca, a imaginação dela entrega-se à tarefa de “libertar-se” dos pais ou de algo que causaram “decepção” e substituí-los por outros, em geral por uma outra forma mais “requintada” que não gere tanto desprazer. Nessa conexão, lança mão de qualquer coincidência oportuna de sua experiência real. A técnica utilizada no desenvolvimento dessas fantasias, geralmente conscientes neste período, depende da inventividade e do material disponível à criança.
Para ilustrar, o caso Tombos de um sonhador, Quinet (2000) usa durante a análise de Jean-Louis duas formas de brincar na tentativa da criança resignificar o seu sintoma.

Jean-Louis é um menino francês de oito anos, segundo filho de uma família que passou uma temporada morando no Rio de janeiro, sendo o pai sul-americano e mãe francesa. Dos quatro filhos homens desse casal, ele e seu irmão que são os filhos do meio são hemofílicos, e o mais velho e o mais novo não. O sintoma que levou Jean-Louis até a análise, é que o mesmo andava totalmente distraído, sem concentração alguma na escola. E, o mais grave que a distração, era os acidentes recorrentes com ele próprio, pondo em risco a sua vida.

O autor no processo de análise utilizou papel e lápis para desenhos livres e, num dado momento, uma brincadeira criativa de contar até três. No decorrer das sessões e a adequada intervenção do analista, Jean-Louis passou a bem-dizer de seu sintoma. O sujeito do inconsciente, que é o sujeito da associação livre, atribuiu um significado que lhe é próprio a partir da interpretação a nível de significante feita pelo analista. Assim, Jean-Louis passou a poder perlaborar a sua relação com seus atos sintomáticos (acting out).

Levando em consideração o que foi dito, o brincar então pode ser um grande aliado no processo de análise em crianças, pois é mediante a atividade que engloba arte e fala que elas poderão expressar os seus desejos e resignificar suas experiências desprazerosas, isso com a ajuda do analista que se presentifica intervindo nas sessões com uma escuta dinâmica mediante a brincadeira feita pelo cliente infante.


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Eduardo Lacerda é psicólogo clínico, pós-graduando em psicanálise pela PUC Minas, interessado no estudo dos sintomas contemporâneos, um curioso que busca entender as implicações do inconsciente na vida singular dos indivíduos pós-modernos.
Visite o blog: www.polemicacomsaber.blogspot.com
Fale com ele: lacerda_eduardo@yahoo.com.br

 

   
 
 

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