
26/02/07
Mandriões sem vida pessoal
E aí você chega do carnaval. Ao redor e à sua frente, caras amassadas, inconsoláveis, saudosistas e suspirosas. “Puxa, que saudade”. Realmente, foi bom, revigorante, necessário. Só que aí, nas primeiras circunferências do inconveniente dia útil pós-descanso, vem logo um filhote de cruz-credo e bombardeia, com superdosagem de cretinice, idéias disfarçadas de realidade: “Brasileiro só trabalha depois do carnaval”; “Eta país preguiçoso, cheio de feriados. Tem cabimento um recesso desse tamanho?”; e, claro, aquela que os chefes adoram “Descansou? De quê, se temos quatorze feriados nacionais?”.
Meus amigos tentam me manter calmo. “Deixa disso, não leve a sério, é brincadeira”. Sabe aquele tipo de gracinha que vira verdade? Algo como uma piadinha de mau gosto que machuca e que, depois, com extrema facilidade, vira uma avenida sem fim de “Desculpa, não tive a intenção”? Essa é a sensação que depõe contra mim no processo da impaciência versus bom humor (?) brasileiro.
Aos colegas, pergunto: “Acreditam mesmo que o brasileiro não trabalha?”. Sorrisos marotos desconversam, mas as sobrancelhas não mentem: “Não sei, mas é divertido distribuir essa informação por aí”.
Transformado em bobo da corte, como ocorre anualmente, faço, logo em seguida, minha boca-de-siri e trato de me recolher à minha insignificância. Ao fim do dia, esgotado, ignoro a cabeça que estoura e se acalenta em fogo. Entre uma dose ou outra de raciocínio embaralhado, ainda tenho o tempo de escutar meu chefe uivar: “Que desânimo é esse? Já não basta o recesso inexplicável de nosso calendário?”. E ainda é quinta-feira. “Até amanhã!”.
Na avenida principal, ouço o rádio do carro ao lado. As músicas não protestam. Engarrafados, os carros, prestes a receber uma cobrança de IPTU, por estarem tanto tempo imóveis, anunciam o retorno da rotina. No ponto de ônibus, rostos cansados driblam a fadiga e se deixam levar pelas filas. E então eu me lembro que o Brasil tem feriados demais, trabalhadores preguiçosos, com mais de oito horas diárias, mal remuneradas, e direitos trabalhistas apontados pelos patrões, na hora dos acertos, como favores ou ‘benefícios’. Também me vem à mente que somos nós, mandriões sem vida pessoal, endividados e que não chegam a tempo de ver os filhos acordados, aqueles que, de fato, devem se sentir culpados por “levar uma vantagem” com tantos feriados...
Do alto de minha tortura pessoal, chego em casa, tomo um banho e vou dormir. E meu sono é de remorso, de quem ainda pensa em descansar para o dia seguinte, depois de já ter sido tão favorecido pelo calendário. “Quanto abuso de minha parte!”.
Indigno da insígnia de ‘trabalhador ideal’, desperto do sono profundo e corro para trabalhar, com mil problemas gerenciais na cachola. “Resolvo tudo ainda hoje. O chefe vai gostar”. No escritório, entro e encontro o comandante em minha mesa. “Já está em ritmo de Semana Santa, é?! Quero essa vida de nababo também!”, e sai pisando duro, com ar de ‘sempre razão’. E eu, que nem cheguei atrasado, trabalho duro novamente, pela lenda de algum dia ser reconhecido, sem qualquer condição de trabalho e com a gratuita e eterna imagem de preguiçoso, beneficiário do calendário, representante de um povo que ‘não quer nada com a dureza’. “Será que tenho coragem de falar que estou no período de tirar férias?”.
__________________________________________
Guilherme Amorim
é um mineiro simples, metido
a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de
devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso,
é jornalista e criador/apresentador do programa Espátula,
veiculado na iRadio. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos.
E-mail: guilbh@gmail.com
|