
24/09/07
Que o último a dormir
apague a luz
Ninguém é corajoso
de madrugada. Não conscientemente. Não, levantar
praticamente moribundo para beber água ou satisfazer
necessidades fisiológicas, sem qualquer coordenação
motora ou intenção clara de ter iniciado a
interrupção do sono, não serve como
argumento. Afirmo e reafirmo: toda e qualquer pessoa tem,
por ínfima que seja, a necessidade de sentir a presença
de um feixe de luz para disfarçar o medo do escuro.
A discreta luz vermelha do
despertador, o stand by da televisão,
o relógio do vídeo-cassete, um santo no corredor,
no alto, com uma mini-lâmpada verde... Não
importa. Se for convidado a adentrar por qualquer residência
desse universo, encontrarei, às vezes com esforço,
noutras sem, algum indício desse tipo. E, sim, caro
amigo. A fosforescência de sua tomada ou interruptor
também desponta como forte evidência da indispensabilidade
resplandecente (até porque você se acostuma
com ela prontamente, sem tecer qualquer reclamação).
Não se pensa nisso com
algum nível de consciência, é bem verdade.
As melhores idéias vêm de madrugada, quando
estamos vulneráveis, perto de um momento de transe,
à mercê de um universo fantasioso que pode
colaborar para o seu relaxamento ou para criar o
seu pior pesadelo (literalmente). O fato é que mesmo
aquela figura hipersensível, que dá solavancos
para mostrar como odeia a entrada de luz no ambiente de
repouso, tem, por si só, uma adoração
pelas luzes (mesmo porque, se alega não precisar
delas, é porque já enxerga claridade suficiente
para não se render ao pavor).
Pode ser conversa de quem dorme
com a luz do corredor acesa, ou viagem de quem acabou de
ouvir a teoria de uma criança, em seu mágico
plano de conseguir deixar para todo o sempre a luz entrar
em seu quarto e lhe permitir, sem rodeios, levantar da cama
quando achar necessário (sem o risco de incomodar
os habitantes do universo paralelo que existe debaixo do
colchão). O ponto é que duvido, com todas
as minhas forças, que não exista, aí
na sua janela, no seu quarto, reflexo mínimo que
seja, algo que, de imediato, derruba a sua banca de sempre
ter dormido na mais completa ausência de luz.
Pois comprovado está, há tempos: a escuridão
nada mais é que brincar de esconde-esconde com a
luminosidade.
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Guilherme Amorim
é um mineiro simples, metido
a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de
devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso,
é jornalista e criador/apresentador do programa Espátula,
veiculado na iRadio. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos.
E-mail: guilbh@gmail.com
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