
21/05/07
O 'pra ontem' hoje e amanhã
Sabe... já procurei, por anos e anos, uma razão para entender por que motivo a criatividade do universo tem caminhado para a extinção... Os colegas riem, dizem que sou ultrapassado, que os avanços da modernidade me levam à contradição, mas eu continuo firme: a cada dia que passa, somos mais velozes e habilidosos na produção de nada (ao cubo).
Acho que a primeira mudança percebi durante a minha própria infância. O futebol era nas ruas, com os gols demarcados com chinelos (o único momento em que 'raiders' e 'havaianas' se misturavam), todos descalços, num macio campo de asfalto que facilmente virava uma grama fofa e cheia de holofotes. A mente de uma criança é realmente inacreditável, mas me arrisco a dizer que, já nessa época, exigíamos muito pouco de nossa criatividade.
Nem uma década se passou e lá estavam meus primos, com a mesma idade dos meus tempos de 'clone do Maradona' (e habilidade do Biro-Biro), enfurnados em um quarto escuro. "Vocês não vão jogar bola lá fora não?", perguntei, já treinando para ser um adulto descolado no futuro. "Pra quê, primo? Se aqui, nesse computador, temos nossos próprios times e gerenciamos os salários, os titulares e as contratações de um clube de futebol?".
Outro dia, um grande mentor disse que sua estagiária no segmento cultural foi incumbida de criar uma marca para uma espécie de centro artístico, com referência a exposições. A ordem era clara: use TODA a sua criatividade. Resultado? Uma seqüência engenhosa e, digamos, bastante incomum: abrir Google > procurar imagens de quadros > recortar moldura de quadro famoso > copiar > digitar o nome do centro artístico no interior da moldura > entregar.
Não é de hoje que se fala na qualidade como o contrário do excesso de velocidade. Em contrapartida, os senhores do tempo da atualidade têm feito um estrondoso esforço para que isso pare de servir de referência, pois, para eles, o que interessa é o material pronto em segundos, seja ele bom ou não. Afinal, hoje, medimos eficiência pela agilidade e, nos percalços dessa rotina estressante e desagradável, influenciados pelo raciocínio binário de quem dita as regras do jogo no momento, acabamos por vincular, numa violência à coerência universal, qualidade a imediatismo técnico-reprodutivo.
A diversão e o trabalho, no momento, estão calcadas na habilidade 'controleremotoresca' dos espectadores. Estamos tão boquiabertos com o volume de coisas que chegam facilmente ao nosso universo que, ao ter nosso esforço criativo solicitado, sequer imaginamos nossa atuação distanciada do papel de coletores de serviços alheios já finalizados.
E, aos meus colegas, volto a perguntar: será que estamos já tão saturados para aniquilar e tornar desnecessária qualquer outra função ativa no mundo? Enfim, fui à falência no tal joguinho de futebol dos meus primos...
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Guilherme Amorim
é um mineiro simples, metido
a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de
devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso,
é jornalista e criador/apresentador do programa Espátula,
veiculado na iRadio. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos.
E-mail: guilbh@gmail.com
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