OPPERAA
 
Baby Boom
     
 
 
     

Da saleta à lembrança, uma viagem curta. Áureos tempos, de discussões, de festas, de amor, de cumplicidade. Naquele universo de uma porta e uma janela, haviam sido felizes, inseparáveis. Mas quis o destino que a tempestade entrasse. E tudo pareceu utopia desde então.

17/12/07
O lodo e o mundo

Pesado, mas conciso. Era essa a virtude do jornal que Otávio ostentava naquela saleta esverdeada, nesse tom mais por lodo que por vigor das plantas desistentes. Os olhares de perplexidade já haviam abandonado o grupo, que passara a sentar-se no chão de terra, tão logo manifestado, pelas cadeiras e poltronas, o desejo de se deixar vencer pela gravidade.

Agora, junto ao portador do periódico, outros dois ignoravam as condições controversas do ambiente, entregue à ação do tempo e do descaso.

- Largue esse maldito jornal, Otávio. Que chatice abominável! – Sílvia era o tormento físico em pessoa.
- Ela tem razão, meu caro. – Demétrius se adiantou, as vestes putrefatas desencontrando-se com as impressões sugeridas pela voz glamourosa. – Que você espera encontrar aí?

Não respondeu no ato. Olhou ao redor, como se aguardasse a chegada de alguém. Respeitosa calada persistiu por mais alguns minutos.

- Dez dias? – enfim, quebrou o silêncio.
- Que diferença faz, Otávio? – Demétrius terminava de puxar os cacos esmorecidos da vidraça, que nem força mais possuía para confrontar os dedos invasores. – Somos nada, o abandono é o que nos resta...
- É essa a realidade que você quer para você? – Otávio continuava a olhar para o pouco de madeira restante do que já fora uma porta. – Desacreditar?
- Comovente a sua ingenuidade, querido. – Sílvia nem percebia os gestos circulares que fazia com a mão direita. – Você voltaria?

Da saleta à lembrança, uma viagem curta. Áureos tempos, de discussões, de festas, de amor, de cumplicidade. Naquele universo de uma porta e uma janela, haviam sido felizes, inseparáveis. Mas quis o destino que a tempestade entrasse. E tudo pareceu utopia desde então.

- Ele virá.
- Otávio, pare com isso! – o vidro remanescente agradeceu por ter sido solto, agora saboreando a liberdade de lodo e terra, mergulhado aos pés de seu herói. – Esqueça o que passou. Nada daquilo era real! – Demétrius queria algo que pudesse socar sem a certeza de que venceria.
- Real é isso, então? – a mão deslizou pelo chão, num suspiro.
- Há quanto tempo estamos aqui, descartados pela minoria que, para ter tudo, não sentiu remorso ao nos ignorar?

Otávio fitou os sinais do tempo, os fragmentos de quadros e a infelicidade do cômodo em que conhecera Alice. Da saudade em que se encontrava, saltou à recordação do luxo e do requinte, da sofisticação que a saleta abrigara há alguns tantos anos. O doloroso adeus, que a levou de seus braços, inquieto na memória, entre fúrias e fagulhas. O ataque, a covardia, a derrota. A disputa comercial doentia que o levou à sarjeta, levou Alice – agora, a única de alta classe –, os filhos e a boa vida. Mas não a sua esperança.

- Eu disse que ele viria! – apontou para a entrada, por onde, com dificuldade, irrompeu um ensopado bichon havanês. Um material protegido por plástico na boca, o cansaço indiscutível nos olhos. O pequeno cão deitou-se ao lado do dono, satisfeito com o afago, após distantes dez dias. – Bom garoto! As notícias do amanhã!
- Grande coisa... O jornal... – Sílvia continuava com os gestos. – Como se adiantasse...
- Não vai mudar nada! – bradou Demétrius.
- Não ligue para eles, Lancelot. Isso fará, sim, toda a diferença. – com carinho, escondeu de todos a imponente data do periódico, perecido há sete meses. – Temos o mundo em nossas mãos!

As lágrimas saltaram e Sílvia finalmente quietou a mão direita. Demétrius a abraçou, confidente, presente. À dupla se juntaram Lancelot e Otávio, num improvisado abraço, desajeitado, braços tentando se alinhar. As mãos (e patas), que se apertavam, revelavam a energia do momento.

- Vamos sair dessa, Otávio? – Sílvia gaguejou, entre uma palavra e outra.
- E nossa família lá é de se entregar?! – enxugou-lhe as lágrimas. – Juntos, podemos mudar essa história.

E isso bastou. Todos sorriram e foram abraçar o mundo. Na noite de natal...

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Feliz natal e um excelente 2008 a todos!


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Guilherme Amorim é um mineiro simples, metido a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso, é jornalista e criador/apresentador do programa Espátula, veiculado na iRadio. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos. E-mail: guilbh@gmail.com

 
 
 

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