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Baby Boom
     
 
 
     

 
Cradle for Grown-Ups in Sick Care, Brick Dwelling, Hancock Shaker Village, New England
Artisat: Humphrey Burton
 
 

07/04/08
As quatro horas de três semanas

Acontece de repente. Não, não é mais um relato de paixonites agudas ou confissões de um abobalhado em frangalhos, vítima de amores platônicos. Guardadas as devidas proporções, o que de mais importante existe para se falar, nesse momento, é a inesperada revolução da saúde, que insiste em se mostrar frágil nos instantes em que qualquer um, por você, colocaria a mão no fogo.

Lá está você, num sábado produtivo, após começar um novo projeto, assistir à vitória de seu time de futebol e ouvir aquela trilha sonora que jamais pensou que conseguiria resgatar outra vez, quando, abruptamente, a chamada da incógnita ofusca seus planos da madrugada: uma dor, que começa como desconforto, depois passa a tomar conta e não lhe deixa terminar de ver um filme do Will Smith (Ok, alguns vão dizer que, então, a dor fez algo de positivo, mas não entremos nesse mérito...).

De uma semana de suspeitas – de gastrite a resistência alimentar –, você passa a desconfiar da própria sombra. “Aceita um biscoito?”. “Será?!”. “E que tal um suco?”. “Não sei de mais nada...”. Sua angústia frente à imprevisibilidade da dor faz com que uma prévia de sua aposentadoria se apresente para uma rápida degustação: e você nada mais é que um ressabiado à espera de um retorno à pró-atividade. Passa um dia, outro, passam cinco. “Já estou bom?”. Então, a hora de dormir é atropelada, novamente, pela visitante imprevisível.

Sua paciência, evidentemente, oscila entre o pavor de descobrir o que pode ser e o desespero de voltar a experimentar as investidas da dor. Seus exames ficam prontos, os resultados não confirmam nenhuma suspeita anterior e trazem logo uma nova incógnita: pedras na vesícula biliar. “Muito bem, vamos ao hospital então estourar essas pedras”. Mas ninguém escuta essa frase, enquanto o médico sentencia: “Ele deve ser internado o quanto antes”.

Sua ficha só cai sobre a gravidade ou a urgência de alguma coisa quando “encaixam” um soro em sua veia. “Que história é essa? Eu não vou embora ainda hoje?”. Claro que não. Você fica no hospital por quatro dias, entre companheiros de enfermaria em estados e doenças mais graves, em meio aos gritos e urros de dor daqueles que lutam, dia após dia, contra o desespero de uma reviravolta do destino. É solidário o grupo que divide uma ala como essa, ainda que, continuamente, seja chamado à loucura e à ira quando, deitado e em repouso como está, se vê despertado por estagiários de fisioterapia e medicina, além de ‘doutores’ que falam bem alto, já que o aluno que pensa em matar aula se encontra ao lado da sua cama, perto da porta.

Nada mais frustrante, também, que pensar estar prestes a receber alta e, simplesmente, ouvir um “Amanhã retorno para avaliá-lo”. Entre as vertigens de remédios para dor e o desconforto das costas, dificuldade para se levantar e a imagem daquele soro que desce com velocidade inacreditável, você finalmente se concentra no objetivo da vez: “Você TEM que se sentir bem amanhã”. Faça um curso de teatro por telepatia, se preciso. Mas esteja corado, para o seu próprio bem.

Então, chega o dia seguinte. Você recebe alta e uns tapinhas nas costas. “Que liberdade, hein?”. Bota liberdade nisso. Você circula pelas alas do labirinto que é o hospital pensando em sua família, que não pôde ficar com você mais que vinte minutos na enfermaria, pensa nos seus cães, que devem ter sido alimentados fora de seu horário habitual e, ainda, lembra do pijama do hospital, da comida e da reação à anestesia. Por um momento, no último corredor, você não consegue recordar da cirurgia em si. Apenas segue, pela última rampa, em direção à claridade que tenta atravessar a sombria porta que separa o mundo do calabouço hospitalar.

Liberdade. Tudo bem, na outra semana você ainda vai tirar os pontos, ficará de molho até conseguir se levantar sozinho ou estagnado até poder retornar às suas atividades habituais. Mas nada se compara à sensação de deixar o hospital. E nossos compadres e comadres que lá trabalham sabem que não é por mal. É apenas o resultado do que foi medo, virou alívio e culminou em reflexão.

A partir daí, vinte, trinta dias, mais ou menos, vão determinar o retorno da vida normal, mas você sabe que, sem dúvida alguma, serão, para sempre, aquelas quatro horas em que passou inconsciente, sob cuidados e procedimentos operatórios, as responsáveis por decretar, dali em diante, a pessoa que você será ao fim das próximas três semanas.


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2007

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Guilherme Amorim é um mineiro simples, metido a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso, é jornalista e criador/apresentador do programa Espátula, veiculado na iRadio. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos. E-mail: guilbh@gmail.com

   
 

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