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Baby Boom
     
 
 
     

 
Aparentemente, um homem, que só havia ingerido uma quantidade mínima de álcool, acertara o táxi que Letícia tinha escolhido para ir embora. “Dormi ao volante”, admitiu o infrator na matéria do jornal. E Ivan só pensava nas dez latinhas que consumira na noite anterior e na discussão com a namorada sobre a lei seca.
 

12/08/08
Guiando entre nuvens

Ivan estava indignado. Ou possesso, talvez. Irado? Bom, se você entendeu que ele estava fulo da vida, começamos bem. É difícil descrever alguém que está fora de si, ainda mais quando os motivos se tornam questionáveis. Mas o fato é que latas voavam pelo chão da madrugada, ressonando nos postes e nos carros e seus alarmes intolerantes.

Os passos sem dono não diziam mais do que precisavam. Manter-se em pé era um problema, mas para que ceder? A discussão no bar já fora suficientemente desgastante, com direito a término de namoro e copos voadores. Por ele, bastava. Só queria ir para casa, descansar e esquecer a raiva, pensar na reconciliação do dia seguinte. Era craque nisso. Letícia sempre o perdoava.

Um giro leve, após doze tentativas. A porta arranhou um pouco, mas no dia seguinte culparia os garotos da vizinhança. A escuridão no banco do motorista não parecia disposta a ajudar e nem sua mão parecia ter independência suficiente para contrariar a preguiça e estender-se até acionar a luz, acima do espelho retrovisor central. Enfim, a partida. Nuvens? Um pouco embaçado.

Reconhecer que bebeu demais é uma dificuldade de todos, sobretudo dos que vêem, na direção, uma prova de reforçar sua masculinidade. Mas Ivan sentiu: não dava. Voltou atrás, ao bar, ao encontro de Letícia. Sem plano B, sem palavras prontas, sem gestos ou estratégia arquitetada. Seria de improviso.

Mas Letícia não estava mais lá. “Por que não entreguei a chave a ela?”. Desolado, tomou o caminho de volta, a pé, foi para casa. O carro que esperasse até o próximo amanhecer. Seu sono era maior, seus reflexos eram “quase” nulos. Confiaria mais nos seus pés confusos que numa máquina controlada por eles.

Enfim, o dia seguinte veio e com ele Letícia. Nos jornais. Acidente de trânsito. Aparentemente, um homem, que só havia ingerido uma quantidade mínima de álcool, acertara o táxi que Letícia tinha escolhido para ir embora. “Dormi ao volante”, admitiu o infrator na matéria do jornal. E Ivan só pensava nas dez latinhas que consumira na noite anterior e na discussão com a namorada sobre a lei seca. A lembrança vinha aos poucos: dissera que a medida era uma solução preguiçosa dos governantes, que a lei não solucionaria o problema, que determinadas quantidades não afetavam ninguém. Zombara de Letícia. O término. Ressaca.

Dor de cabeça e passos apressados. O portão aberto, familiares em massa. Letícia estava lá deitada, mas passava bem. “Foi só um susto”, ela disse, para tranqüilizá-lo. “Não voltei para casa. Fui ao bar falar com você”, ele contou, deslizando a mão pela face da jovem. “Fico feliz”, Ivan a ouviu dizer, antes de retornar ao repouso.

Letícia dormiu, mas Ivan acordou. A ficha caiu. Sem sua argumentação financiada pelo vício, adocicada pelo prazer de levar sua própria vantagem, percebeu que não era capaz de julgar que quantidades de álcool afetam, e a quem afetam. Viu que uma medida preventiva é uma forma de proteger aqueles que vão embora para casa com reflexos inteiros, conscientes de sua segurança e prontos para guiar defensivamente pelos demais. Entendeu que o pedido de Letícia, para que não dirigisse, não era uma represália à sua liberdade, ou mesmo uma afronta à sua masculinidade indiscutível. Viu que era tudo proteção. E que mal há nisso?

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2007

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Guilherme Amorim é um mineiro simples, metido a organizado e que sobrevive sem estantes. Além de devoto da Mega Sena, irônico e canhoto fervoroso, é jornalista e criador/apresentador do programa Espátula, veiculado na iRadio. Escreve mensalmente na coluna Trejeitos. E-mail: guilbh@gmail.com

   
 

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