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Baby Boom
     
 
 
     
Olhou para ela, deitada, corpo esguio, em sono profundo. Achou-a tão bela que não resistiu: abaixou-se para beijar-lhe os lábios. Naquele instante, entre a decisão de beija-la e o beijo, parece ter-lhe vindo à memória uma vida inteira, um mundo completo, de sonhos, planos, gargalhadas, conversas intermináveis à luz da lareira, perfumes, olhares e noites de embriaguez.
 

29/10/07
Eu não quero perder um só detalhe

I.

Olhou para ela, deitada, corpo esguio, em sono profundo. Achou-a tão bela que não resistiu: abaixou-se para beijar-lhe os lábios. Naquele instante, entre a decisão de beija-la e o beijo, parece ter-lhe vindo à memória uma vida inteira, um mundo completo, de sonhos, planos, gargalhadas, conversas intermináveis à luz da lareira, perfumes, olhares e noites de embriaguez.

Sorriu como um tolo quando a viu abrir os olhos e dizer:

* O que faz aí, me olhando desse jeito?
* Gosto de vê-la dormir. Parece um anjo.
* Você me deixa sem jeito...
* “I don’t want to miss a thing”, lembra?
* Claro... Como esqueceria? – disse ainda sonolenta, sorrindo ao lembrar-se da música do casal.
* Vamos, Bela Adormecida! Levanta-se que tenho muitos planos para esta bela manhã de domingo! Vou leva-la àquele hotel fazenda que tanto quer conhecer. – disse segurando uma de suas mãos.

Ela sorriu um sorriso maroto e respondeu, puxando-o bruscamente para junto do leito:

* Pois hoje quem tem planos sou eu!
* Você é mesmo imprevisível! – disse ele às gargalhadas, rendendo-se aos carinhos.


II.

Acordou assustado com as horas. Passava das duas da tarde. Olhou ao lado e não a viu. Levantou-se e foi até a cozinha. Recostou-se na porta. Lá estava ela, acabando de aprontar a mesa. Um belo arranjo de lírios, suas flores prediletas, enfeitava o tampo de vidro, formando um agradável visual em conjunto com pratos e talheres cuidadosamente colocados. Passou alguns segundos observando aquele exemplo de carinho e dedicação, até que foi descoberto.

* Gosta de me vigiar, não é mesmo? – disse ela, repreendendo-o de maneira carinhosa
* Gosto de lhe apreciar, é diferente. – respondeu, beijando-lhe a testa
* Preparei seu prato predileto.
* Lasanha?
* Veja. – disse ela, retirando o belíssimo e perfumado prato do forno.
* Hummm! Parecem deliciosas! Você e a lasanha.


III.

O dia de trabalho seguia comum, o que significa dizer tumultuadíssimo. Na redação, a rotina típica: silêncio e calmaria no princípio dos períodos (quando a maioria dos repórteres saía para cumprir as pautas do dia), a pressa e o barulho estressante no início da noite (horário de fechamento da edição).

Já passava das 19 horas. Ele acabara de chegar da rua. Quatro pautas só naquela tarde. A última delas a cobertura de uma chacina: na zona rural, um homem matou a esposa e os cinco filhos, pouco antes do suicídio. O cansaço se aliava à desilusão com a raça humana, que o acometia todas as vezes que voltava de uma pauta pesada como aquela. No celular, já somavam três as ligações que ela lhe havia feito. Não atendera nenhuma. A cabeça cheia de preocupações e a correria entre um lugar e outro não lhe permitiram. Retornaria mais tarde. Agora não havia tempo.

Redigiu as matérias quase mecanicamente. Revisou o português como pôde. Sentia-se dolorido. Despediu-se rapidamente dos colegas. No carro, um bom CD o ajudou a relaxar. Já em casa, depois do banho e do jantar, ainda tinha muito o que fazer: alguns trabalhos extras, além da leitura para a pesquisa de mestrado. Antes disso, respondeu alguns e-mails de cunho profissional e fez um breve telefonema ao amigo que passava por problemas.

Só percebeu a mensagem no aparelho celular minutos antes de se deitar: “Querido, conte com meu abraço para aliviar seu cansaço. Sei que teve um dia corrido. Amo você.” Sorriu. Era bom ser amado daquela forma. Pousou o celular sobre o criado-mudo e, exausto, adormeceu.

IV.

Era seu dia de folga. Precisava dele como nunca. O trabalho, os estudos e as diversas atividades que desempenhava consumiam toda a sua energia. Dormira até as 11 da manhã. Tomou um café leve. Em seguida, ligou para ela.

* Bom dia, princesa.
* Oi, meu amor! Que surpresa maravilhosa! Como você está?
* Acabei de acordar. Estou de folga. Passo hoje para te ver.
* Jura!? Adorei! Vou preparar um almoço especial pra gente.
* Infelizmente para o almoço não vai dar, amor. Já marquei futebol com a rapaziada.
* Ah, sim... Está certo, então. Ficarei esperando mais tarde. – disse ela, sem conseguir disfarçar o tom de decepção na voz.

Despediram-se carinhosamente. Enquanto se trocava para sair, ele pensava no quão doce era a mulher que tinha a seu lado. Orgulhou-se daquilo. Passou a mão na pequena mala esportiva e saiu rumo ao velho campinho de futebol.

Rever os amigos, bater uma bola, tomar a famosa “cerva” gelada. O clima de descontração recarregava suas baterias. O futebol era um lazer do qual não abria mão. No campo, o jogo parecia difícil. O time adversário conseguira empatar, formando um placar de 3X3. Como atacante, ele sentia sobre si a responsabilidade do desempate.

Minutos finais do jogo, o sol quente aumentava o cansaço. Com uma passada de bola do amigo dos tempos de jardim, finalmente, o gol. Exatamente como ele havia desejado! Comemorou aos pulos, correu pelo campo. Foi quando a viu. Bela como sempre, vestindo uma roupa esportiva, braços abertos, vindo em sua direção.

* Surpresa! Parabéns, meu artilheiro! – disse entre beijos, abraços e sorrisos.
* Você é louca! – respondeu ele, retribuindo os carinhos
* Louca por você. – sussurrou ela – Não suportaria esperar até a noite para te ver. – complementou.


V.

A febre não cedia. As dores no corpo e de cabeça não davam trégua. A boca seca, os lábios feridos, a tontura e a falta de apetite completavam os sintomas. Há três dias a forte inflamação das amídalas não lhe dava descanso. E, durante todo o tempo, incansável mesmo parecia ela. Trocou a toalha úmida que aplicava na fronte do enfermo e verificou novamente a temperatura.

* Trinta e nove. – disse com ar preocupado.
* Você deveria estar trabalhando. – resmungou ele.
* E você acha que estou fazendo o que agora, caro paciente? – brincou ela.
* Você não é enfermeira.
* Sua sou sim. Ademais, consegui folga hoje. Tinha algumas horas na casa.
* Não sei o que seria de mim sem você, doutora.
* Pssiu! Calado. Hora do remédio. Abra a boca.


VI.

Seus lábios finalmente tocarem os dela. O gosto gélido daquele beijo o acordou do transe, trazendo-o de volta das lembranças. Olhou novamente o corpo esguio, deteu-se na palidez do rosto angelical. Angelicais também haviam sido as suas atitudes, todos os seus gestos. Quis voltar no tempo e impedir que os momentos felizes acabassem ali, presos naquela caixa, junto ao corpo inerte da mulher que não soube amar.

Lembrou-se da discussão. Ela cansara-se de dar sem receber. De oferecer cuidados e amor e receber em troca apenas a falta de tempo, a indiferença, o excesso de afazeres de quem amava. Sentiu-se envergonhado da sua distração. Como não conseguira perceber o quanto faltava àquela mulher que era tão presente em sua vida?

* Você é egoísta! – acusara ela, durante a discussão.

Sim, ele havia sido egoísta. Talvez, se tivesse compreendido antes que as prioridades da vida eram diferentes daquelas em que ele acreditava, pudesse ter evitado as lágrimas que lhe salgavam a boca naquele instante. Se já tivesse percebido que demonstrar carinho a alguém é muito menos uma questão de tempo que de intensidade, as coisas teriam sido diferentes. Acomodara-se. Esquecera o homem romântico e atencioso de início do namoro. Ela sentira a mudança e o acusou. Agora, as circunstâncias o declaravam culpado.

Culpava-se pelo acidente. Certamente, não estivesse tão atordoada, ela não teria se distraído ao volante. Torturava-se por a ter perdido daquela forma. Minutos antes do ocorrido, ela punha fim ao relacionamento. Não suportara as dúvidas, as incertezas sobre um amor que só ela sabia demonstrar.

* Desculpe-me se falhei. Tentei ser perfeita, mas não consegui. – havia dito, antes de sair apressada.

O imperfeito fora ele. A culpa martelava em sua cabeça, fazia doer-lhe o estômago, imprimia um gosto amargo em sua boca. Não conseguia deixar de pensar nos “se’s” e “talvezes”. Lembrava-se da música do casal: “I don’t want to miss a thing”.

* “Eu não quero perder um só detalhe”. – traduziu, repetindo em voz baixa o seu pensamento

Era tarde demais. Ele havia perdido o principal.

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Do jornalismo à literatura, ou vice-versa, Ariadne Lima é apaixonada por letras. Jornalista, defensora do jornalismo literário (junção de suas duas paixões), procura ver e descrever o mundo usando as lentes da poesia. E-mail: ariadnemlima@yahoo.com.br


   
 

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