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O mexicano Guillermo Arriaga retrata, em seu filme “Babel”, de 2007, formas contemporâneas de colapso na comunicação humana em situações nas quais comunicar-se é imprescindível.

 

30/10/07
A Torre e o Poço de Babel

“Não existe mais uma única pessoa inteira neste mundo, nada mais somos que discórdia e complicação. O que chama-se vulgarmente personalidade é um complexo e não um completo.” (Mário de Andrade. In: Amar, verbo intransitivo – idílio.(1927) 16ª ed., Ed. Villa Rica, Rio de Janeiro, 1995. Pg.80)

Acredito ter sido por volta dos meus oito ou nove anos de idade quando tive consciência de que em outros lugares do mundo havia pessoas falantes de línguas que eu não entendia. Fui tomado então por uma sensação de incomunicabilidade total me imaginando cercado por húngaros, gregos, chineses ou usuários da língua dos sinais. Para o menino que eu era, soaria absurda a versão de que todo esse caos é culpa de um grupo de homens que queriam tornar-se célebres construindo uma cidade e uma altíssima torre numa planície da terra de Senaar, no Oriente Médio. O mito bíblico da torre de Babel (palavra ligada artificialmente ao verbo balal: misturar, confundir) simboliza o princípio dos choques e desigualdades da humanidade, culminando com a incompreensão não só lingüística, mas também sociocultural. O ímpeto de um povo se colocar acima de outros povos, retratado na passagem do Gênese, indica que quem “bagunçou” as línguas foram antes os próprios homens e não o Senhor. Um exemplo desse processo são as duas formas do latim, uma oficial e uma “vulgar”, que originou a língua italiana e as línguas latinas com a expansão romana.

O mexicano Guillermo Arriaga retrata, em seu filme “Babel”, de 2007, formas contemporâneas de colapso na comunicação humana em situações nas quais comunicar-se é imprescindível – embora, como mostrado no decorrer do filme, inútil. A forma como foram cortadas e o encadeamento das cenas deixam o espectador abandonado em momentos de angústia. Momentos em que palavras, mesmo que compreendidas, perdem seu sentido para o não-dito. Momentos em que elas retrocedem ao seu estado original de código, rebeldes, incompatíveis.

Ignoramos o abismo entre as idéias ou sentimentos e os conceitos de que dispomos para expressá-los. As línguas são arbitrárias, subjetivas e, por serem usadas por seres humanos complexos, se adaptam à sua cultura. Em alguns idiomas há sete palavras para “neve”; em outros, azul e verde são consideradas uma mesma cor; em um deles uma mesma palavra pode ter até seis significados de acordo com sua pronúncia. A sensação de incomunicabilidade que tive quando criança vez ou outra retorna, mas agora ela vai muito além da barreira lingüística. É uma incompatibilidade quase espiritual que, felizmente, acaba passando, quase sempre através do contato com uma linguagem universal – a Arte. Esta, ao contrário da Torre, seria o Poço de Babel, que nivela todos os homens em um só patamar de comunicação, mais profundo que a superfície em que vivemos.

Escrever é, no meu caso, um método catártico¹ para a incomunicabilidade, assim como quase todas as formas de arte que conheço. Ter contato com elas possibilita construir uma imagem de si para si mesmo através do contato com o que há de nós nos outros. Em uma palavra: Mitgefühl – em alemão, mit é a conjunção “com” significando “junto a/de”, e Gefühl é sentimento. Dentre outras acepções, significa reconhecer no outro sentimentos em comum. Empatia, embora essa palavra não abarque todas as nuances do termo em alemão, por exemplo. E isso pode ser fundamental, pois, como diz Bernd Latour: “Der Teufel steckt im Detail” (O diabo se esconde nos detalhes). Todo texto é, no mínimo, três textos – o que o autor quis dizer, o que ele escreveu e o que o leitor entendeu do que leu. Sob essa perspectiva, ao se lidar com arte trabalha-se ainda a relatividade das coisas, a importância e a beleza da diversidade, e, fundamentalmente, a tolerância.

Um professor de Literatura certa vez me deu a seguinte instrução: “Pense que você escreve para um leitor em Timor Leste”, na Ásia, onde a língua oficial também é Português, devido à colonização. Mas quem dera falar a mesma língua significasse ser compreendido. Que o digam os milhões de estudantes de língua estrangeira que se aventuram no exterior. Que o digamos nós mesmos, que nos estranhamos com nossa própria língua, muito mais brasileira que portuguesa. De qualquer forma vale a pena insistir.

Em uma entrevista, Arriaga postulou três mandamentos para se acertar o alvo com a pena, ou seja, dar vazão ao potencial criativo e catártico que o exercício da escrita pode proporcionar:

1. Um escritor escreve. Pode parecer bobo, mas arte também exige prática.

2. Termine o que começares.

3. Não julgue seu próprio trabalho – deixe que os outros o façam.

Nesse sentido, bom trabalho ao cavar seu poço!

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¹ Método catártico: termo extraído do usado por Aristóteles (katharsis) na concepção da tragédia, retomado por J. Breuer e S. Freud. Designa o primeiro método psicanalítico deles: a revivescência de uma situação traumática liberaria o afeto "esquecido" e este restituiria o sujeito à mobilidade de suas paixões.

 

 

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Rafael Silveira nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente o processo infinito de aprender a escrever desde os seis anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta, só para o que ama. Aí estão incluídos, além da literatura, música, pintura e cinema (como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou seu "Pretérito Imperfeito", reunião de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com


   
 

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