OPPERAA
 
Baby Boom
     
 
 
     
Silenciosamente concordava que muitas crianças perdiam suas vidas para o tráfico para que ela pudesse acender aquele cigarro de maconha. Ele também. Mantinham os olhos firmes na tela, evitando encarar um ao outro.
 

19/10//07
Uma viagem de ficção

Num daqueles programinhas de domingo, o casal apaixonado foi ao cinema. Normalmente, optariam por algum romance bem melado, para que ela ficasse bem derretida e ele desse o bote depois da sessão. Mas, foram assistir Tropa de Elite.

Já tinham assistido ao filme pirata, mesmo sabendo que pirataria era crime. Na ocasião, ele chegou no apartamento dela com um vinho em uma mão e na outra dois dvds: Tropa de Elite e Shrek 3. Contou vantagem:
- Olha só gatinha, um era 7, mas o cara fez esses dois aqui por 10, qual cê quer ver primeiro?

- Humm... vamos tomar esse vinhozinho antes, mô?

- Só se a gente fumar unzinho também...

Nesse dia não viram nem Shrek, nem o Capitão Nascimento. Beberam, fumaram e acordaram ressaquiados na hora do almoço. Depois de comerem alguma coisa, enrolaram um baseado e foram ver a Tropa. Ah! Esqueci de contar... eram estudantes universitários... Ela fazia pedagogia, ele publicidade.
Assistiram ao filme até a última ponta. Ela sentiu uma sensação estranha enquanto dava uma bola e o tal do Capitão Nascimento gritava: “É estudante? É estudante? Sabe quem matou esse cara aqui, você sabe?”. Silenciosamente concordava que muitas crianças perdiam suas vidas para o tráfico para que ela pudesse acender aquele cigarro de maconha. Ele também. Mantinham os olhos firmes na tela, evitando encarar um ao outro.

O filme terminou, ambos concordaram que era um filmão e só. Não quiseram entrar em detalhe. Ela foi logo mudando de assunto, abrindo a geladeira para comer alguma coisa. Ele foi tomar um banho. Meia hora depois, era como se o filme não tivesse acontecido.

Entre a versão pirata e o dia que resolveram ir ao cinema, passaram alguns meses. Dois ou três. A idéia surgiu num barzinho, um casal de amigos tinha ido ao cinema e sugerido que os dois também fosse. Ela não queria e seus olhos miraram o chão. Não queria se sentir cúmplice de nenhum crime de novo. Ele também não estava muito afim, mas engoliu seco e perguntou: “vamô, linda?”. Ela topou.

No domingo lá estavam eles. De novo. A fila estava enorme, mas eles deram um jeitinho e conseguiram os ingressos. Compraram pipoca, refrigerante diet, porque ela não queria engordar. Com o início do filme, a única coisa que ela queria era que chegasse ao fim... Havia muito dela naquela moça que estudava Direto e presidia a ONG.

Pensava, durante o filme, que fumar maconha não poderia ser algo assim tão grave. Ela dava aula para crianças carentes, era de boa família. Mas a tal da Maria também era... Não havia subterfúgios. A realidade a encarava na forma de filme...

Ele pensava porque diabos estava vendo aquela droga... Não era o playboyzinho de olhos azuis, ele tinha escrúpulos, princípios. Fumava um porque gostava da onda. Vendia pros amigos porque tinha uns contatos. Mas não havia nada de comum entre ele e aquele traficante. Ele, o namorado, era estudante. Ia se formar no final do ano.

Assistiram ao filme até o final, mais uma vez. Numa tortura psicológica que parecia não ter fim. Era impossível negar a semelhança, por mais que tentassem. Personagens e pessoas se confundiam nos seus pensamentos... Um estampido de tiro os trouxe de volta à realidade. Suspiraram aliviados. Não esperaram as luzes se acenderam e levantaram com pressa. Não disseram uma só palavra. Não se olhavam.

Foram direto para o carro. Ela ligou o som e no rádio Gilberto Gil mostrava uma alternativa... “vamos fugir... desse lugar, baby... vamos fugir...”. Ele, um ato de bravura, quebrou o silêncio:
- Não sei o que a gente veio fazer aqui. Cinema nacional é mesmo uma bosta. Os cara inventam as coisas, até parece que na vida real é assim...

Como ela permaneceu em silêncio, ele pegou um baseado, estrategicamente guardado no quebra-sol do carro. Acendeu, deu uma bola. Respirou fundo absorvendo todo o cheiro que se espalhava pelo ar. Deu mais uma bola. Passou o cigarro para a namorada. Querendo fugir dali, ela o pegou apressada. Fumou rápido. Queria fugir dali e começou uma outra viagem...

Sempre a mesma...

A mesma viagem... Uma viagem na qual cinema e vida real não têm nada em comum. Uma viagem de ficção.

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Thaís Palhares é belorizontina de nascença. Palhares de pai. Fernandes de mãe. Thaís de comum acordo. Jornalista por opção e por convicção. Escritora por paixão. Viva, por isso, incansável. Escreve aqui todas as sextas-feiras. Fale com ela: thaisgalak@gmail.com


   
 

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