
30/11/07
Reflexões sobre sentimento de culpa, psicanálise e religião
Este presente artigo propõe fazer algumas reflexões sobre sentimento de culpa, religião e psicanálise.
Do ponto de vista cristão, pecado é tudo aquilo que transgride as leis de Deus, ou seja, tudo que o homem faz e realiza sem a observância das leis divinas. No olhar da psicanálise, podemos dizer em certa parte que o sentimento de culpa resulta do conflito entre o Eu ideal, ou seja, aquilo que gostaria de ser e o Eu real, ou seja, aquilo que realmente sou. Desta forma podemos dizer que o sentimento de culpa provem do sujeito ser aquilo que não é. No aspecto religioso o sentimento de culpa aparece quando o sujeito não consegue se adequar as leis divinas.
Em seu artigo atos obsessivos e práticas religiosas (1907), Freud relata que as compulsões e proibições no qual o sujeito se comporta, na verdade é um sentimento de culpa inconsciente originado de vivências mentais primitivas que são revividos pelas repetidas tentações que resultam a cada nova provocação.
Boss em sua obra Angústia, culpa e libertação: ensaios de psicanálise existencial fa z uma distinção etimológica da palavra culpa e angústia. Culpa vem da palavra alemã Sculd que significa “aquilo que falta”, ou seja, aquilo que o ser humano sempre busca e não encontra. Angústia vem do grego Ancho que significa estreiteza, apertado e estrangulado. Segundo Boss (1981), podemos dizer que a primeira angústia na vida humana, a angustia de parto, será a causa primária de todas as angustias posteriores, como medo de Deus, medo dos estranhos, medo da morte etc.
A angústia podemos dizer e tomada de um “de que” sujeito tem medo e um “pelo que” pelo qual este teme. A culpa tem um “o que ele deve” onde existe um “credor” ao qual deve ser pago, ou seja, trata-se de uma divida do qual o sujeito tem que pagar. Nesse sentido é preciso saber sobre nossas compreensões psicológicas da condição total da essência humana. Principalmente, porque o ser humano se mostra como sendo aquele ser do qual o nosso mundo precisa e necessário para poder aparecer e poder ser. É este se deixar necessitar que o ser humano “deve” àquilo que “é” e que “há de ser”. É por isso que todos os sentimentos de culpa baseiam-se neste ficar-a-dever, que é a culpabilidade existencial do ser humano (Boss, 1981).
Neste sentido, podemos fazer um paralelo às idéias de Freud (1907), quanto ao sentimento de culpa dos neuróticos obsessivos. De acordo com o autor, o sentimento de culpa provem da certeza que os indivíduos tem de sua condição pecadora e as práticas dogmáticas com que estes sujeitos se relaciona tem o valor de proteção e defesa. Os atos cerimoniais e obsessivos surgem como uma forma de proteção contra a tentação e contra algum mal esperado. Porem estas medidas de proteção parecem falhar ou ser insuficiente surgindo então proibições para manter longe situações que podem gerar tentações (Freud, 1907).
Nos atos obsessivos o simbolismo resulta de um deslocamento de um conflito real por um trivial e também no campo religioso, existe um deslocamento de valores psíquicos, de forma que elementos da pratica religiosa como os cerimoniais aos poucos adquirem um caráter fundamental, tomando lugar do pensamentos essenciais – como forma de aliviar seu “dever” no cumprimento dos dogmas religiosos. Portanto para Freud (1907) descreve a neurose obsessiva como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal.
Freud relata que é através da supressão de certos impulsos sexuais melhor dizendo através da renuncia de impulsos egoístas, socialmente perigosos que se baseara a formação da religião. O impulso reprimido é sentido como uma tentação gerando ansiedade.
A ansiedade representada sob forma de temor da punição divina onde podemos dizer que o sentimento de culpa aparece sob uma tensão continua e a ansiedade expectante, nos são familiares há mais tempo no campo da religião do que no da neurose. Segundo Freud (1907) as recaídas são bem mais freqüentes entre indivíduos religiosos do que entre neuróticos gerando assim os atos de penitência, que tem seu correlato na neurose obsessiva.
Entretanto Boss (1981) nos alerta que o sentimento de culpa não pode ser reduzido a sentimentos de culpa psicológicos meramente subjetivos ou até adestrados de fora, que possam ser eliminados analiticamente. A culpa é um sentimento “ sine qua non ” do ser humano e assim permanece ate sua morte.
Em sua obra o ego e o superego (1923 b), Freud relata que a religião, a moralidade e o senso social em sua forma originária foram uma só coisa (hipótese apresentada em Totem e Tabu) adquiridos a partir do complexo paterno, ou seja, a repressão moral e religiosa mediante a necessidade de dominar o próprio complexo paterno e o sentimento social mediante a necessidade de superar a rivalidade que permaneceu entre os membros das gerações mais novas.
Em Totem Tabu , Freud (1923b) o sentimento de culpa gerado pelo assassinato do pai primevo continua agindo em nos. Este acontecimento, o assassinato do pai, e revivido na forma inconsciente no complexo de édipo caracterizado pelo desejo do filho de possuir a mãe e a interdição do pai. Esta interdição leva a uma rivalidade onde o filho deseja eliminar o pai. Mais é importante dizer que este pai não é o pai real. A eliminação da figura paterna refere-se ao símbolo da interdição do incesto, onde esta interdição paterna é introjetada surgindo assim o superego. Este superego é uma instancia da personalidade onde a culpa será conhecida como angustia por haver infringido uma interdição.
Nos primeiros anos de vida da criança o sentimento de culpa e gerado pelos pais através da transgressão de suas ordens e proibições. Mais tarde estas proibições são introjetadas no próprio superego. Desta forma, o individuo diante alguma autoridade ou diante de Deus se sente culpado e criminoso quando comete um “pecado”. Boss (1981). Podemos perceber que a partir do desenvolvimento da criança, o papel das autoridades e do pai continuam exercendo de forma poderosa no ideal do ego e continua sob a forma de consciência a exercer a censura moral. O auto-julgamento é que diz para o ego que este não alcançou seu ideal produzindo assim o sentimento religioso de humildade a quem o religioso apela em seu anseio. (Freud 1923b).
Freud em seu artigo as relações dependentes do ego , elucida que o sentimento de culpa não é apenas aquele sentimento consciente e normal, mas também a expressão de uma condenação do ego pelo superego.
Do ponto de vista da psicanálise é importante elucidar que o sujeito é constituído por várias identificações que estruturam as diversas instancias da personalidade. Identidade nos faz ter a sensação interna de que “eu sou eu”. A identidade esta intimamente ligada à idéia de uma diferença entre um dentro e um fora separados da pele que cobre o corpo. A idéia de que eu sou eu e, portanto eu não sou os outros, com a conseqüente inferência de que “cada outro é um eu”, habitando seu próprio espaço, do lado de dentro de uma pele (Mezan, 1995).
É importante dizer que é necessário distinguir as identificações estruturadoras do ego onde uma é responsável pelo sentimento de identidade e outra que organiza o ideal de ego e o superego. Como todos sabem a missão do ego é negociar, harmonizar os conflitos e as exigências entre o id e o superego. O superego herdeiro do complexo paterno é responsável pelas observância das normas e valores da cultura introjetados pela educação. Ele mergulha suas raízes no inconsciente, criticando e observando o Ego e ameaça-o caso não se comporte segundo as regras impostas (Mezan, 1995). Portanto do podo de vista da psicanálise, o sentimento de culpa é resultante de um conflito entre o id e o superego, onde o ego como mediador é encarregado de servir a três senhores: o mundo externo, a libido do id, e a severidade do superego. Esse atrito que chamamos de culpa é totalmente inconsciente e decorrente dele pode surgir como sintoma psicopatológico a necessidade de punição ou de castigo. (Kusnetzoff, 1982).
Podemos, portanto no grupo da instancia diferenciar o superego e o ideal de ego. Este surge a partir das identificações com ideais desejados dos pais sob os filhos, enquanto o ego ideal é uma espécie de super ego para consumo próprio correspondendo a uma inflação do próprio ego, o ideal do ego se coloca frente, como um modelo que deve ser igualado, e que permanece a uma certa distância do ego. Quando esta distancia é diminuída o sentimento que surge no individuo é de uma intensa felicidade. Entretanto é mais freqüente a percepção dolorosa que sentimos entre o que sou e o que deveria ser: é desta comparação que nascem os sentimentos de inferioridade (Mezan, 1995). Temos portento que a identidade é um magma instável de afetos e representações e que isto é inevitável, dada a necessidade de conciliar identificações que não podem ser compatíveis entre si e conflitantes com os impulsos inconscientes que residem na alma humana (Mezan, 1995).
Torellò em sua obra Psicanálise ou confissão? elucida que em alguns sujeitos a culpabilidade não a relação a dor e a consciência do pecado, isto é, não há uma culpa objetiva. Esses sentimentos são objetos de estudo da psicologia. Alguns autores confundiram o sentimento de pecado com sentimento patológico de culpa, porem este erro frisa Torellò (1967) é tão absurdo como de confundir consciência moral com superego. Segundo Freud é através da transgressão das leis do superego que nasce o sentimento de culpa, portanto sendo sua raiz inconsciente o sujeito não reconhece sua angustia projetando-a sobre infrações reais ou imaginarias. De acordo com o autor, o arrependimento pelo pecado real é preciso, claro com nitidez na consciência. Assim podemos observar que Tollerò (1967) difere sentimento de culpa e pecado por transgressões inconscientes e conscientes, respectivamente. Portanto, a religião é indiretamente, um meio de homem transcender a si mesmo.
Em contrapartida, corre–se o risco do neurótico criar uma falsa espiritualidade e uma moralidade hipócrita, que o impedira uma vida boa e progresso de sua espiritualidade. Ele é dirigido por motivações inconscientes de caráter egocêntrico, ou seja, ele funciona mais a serviço do eu a serviço de Deus e dos valores. O sujeito neurótico confunde assim o ideal perfeito com a impecabilidade. Amando assim somente o eu ideal e ilude-se julgando amar o próprio ideal, sem encontrar harmonia. Possui uma religião baseada no temor e na angustia de Deus e por isso é inflexível para com ou outros, a quem procura impor, sem saber propor, o ideal. O neurótico obedece a um dever como uma tentativa de fugir da angústia, onde este cumprimento do dever exerce uma função sedativa, uma necessidade de segurança, um esconderijo do narcisismo e do amor desordenado de si. Seu sentimento de culpa o invade independente de ter cometido alguma mal e assim mostra-se angustiado por faltas sem relevância ou importância, abandonando assim facilmente à tristeza e aos sentimento de inferioridade e insuficiência. O fato de que todas as abordagem psicológicas reconhecem uma estreita relação entre as neuroses e a vida moral do sujeito levou a uma concepção na qual o psicoterapeuta seria um substituto do sacerdote e a psicoterapia, da confissão sacramental (Torellò, 1967).
Freud relata que nem todo sentimento de culpa é patológico e o reconhecimento de uma culpa também pode envolver emocionalmente o culpado. Em alguns sujeitos surgem a necessidade de expiação da culpa através de condutas autopunitivas, relacionando assim o pecado à culpa tendo conseqüências imediatas o castigo e a punição. Podemos observar estes fatos com clareza entre sujeitos neuróticos que buscam atos cerimoniais uma proteção contra o mal, mantendo distancia situações tentadoras (Freud, 1907). Portanto do ponto de vista da psicanálise, quanto ao controle institual da moralidade, pode se dizer que o id é totalmente amoral; O ego faz um grande esforço para ser moral e o superego é super moral e pode tornar-se tão tirânico quanto somente o id pode ser. É interessante perceber que quando mais o sujeito controla seus impulsos agressivos para com o exterior, mais cruel e tirânico ele se torna em seu ideal de ego. O modo erigido pelo ideal do ego parece ser o motivo para a o controle da agressividade (Freud, 1923a).
Enfim, é importante o reconhecimento da culpa, como fruto de uma reflexão e critica diante uma transgressão. Pois desta forma o sujeito toma consciência da ruptura existente entre o que almejo ser e o que realmente sou. O arrependimento e o remorso aparecem como uma primeira tentativa para aliviar a angústia, podendo levar o sujeito a uma harmonia interior ao desespero.
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Samuel
Franco dos Santos é psicólogo, pós-graduando
em Teoria Psicanalítica Fale com
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