
19/12/07
Acho melhor você não ignorar Bartleby
Antes de qualquer coisa, peço desculpas aos leitores pelo sumiço. Final de ano é sempre uma época conturbada. Acabei sendo engolido por um mar de atividades profissionais + atividades acadêmicas + problemas pessoais. Claro que os problemas da labuta não podem servir de desculpa, mas prometo ser mais presente daqui em diante! Volto falando de um livro muito bacana e que é/foi pouco comentado pela imprensa e crítica literária.
Estranho. Muito estranho. Talvez sejam essas as melhores palavras para definir o livro “Bartleby, O escrivão. Uma história de Wall Street”, de Herman Melville, editora CosacNaify, 2007.
A obra conta a história de Bartleby, escrivão de um escritório de advocacia de Wall Street, em meados do século XIX. A trama é narrada pelo advogado, dono do escritório e patrão de Bartleby. Um homem que não revela o seu nome e que “sempre teve a firme convicção de que a forma de vida mais fácil é a melhor”.
O advogado tem três empregados: Ginger Nut (um garoto de 12 anos), Turkey (que ficava intragável a tarde) e Nippers (que ficava intragável durante a manhã). Tudo muda quando um novo funcionário chega ao escritório: Bartleby. O rapaz parecia ser extremamente competente e produtivo, e, o melhor, muito calmo e sereno - o que poderia trazer um pouco de paz para o escritório.
O patrão estava radiante, certo de que havia feito a escolha certa. Até o dia em que ele pede para Bartleby reler um documento. Eis que Bartleby responde, calmamente, “acho melhor não” ( I would prefer not to, no original). O patrão fica estupefato, e até mesmo indignado e resolve pedir mais uma vez. “acho melhor não” é a resposta que ele obtém novamente.
A partir desse momento, o leitor entra, junto com o patrão, em uma verdadeira jornada para tentar entender um pouco do estranho Bartleby, que recusa veemente todas as ordens com um calmo e tranqüilo “ acho melhor não”. Afinal de contas, quem é este homem? Porque ele é assim?
O patrão se sente impotente diante dessa recusa tão passiva. Ele não sabe se deve odiar ou cuidar de Bartleby. Todos esses sentimentos ambíguos são muito bem retratados por Melville, que em nenhum momento é maniqueísta ou demonstrativo.
O advogado se sente compelido, a principio, a um sentimento de pseudo-caridade. Ajudar Bartleby era uma maneira de ajudar o seu ego e sua moral cristã, mesmo sabendo que sua ajuda era pouco ou nada efetiva para o estranho escrivão. A auto-indulgência toma o lugar da verdadeira vontade de amparar.
A caridade evolui com o passar da obra para a incompreensão profunda e até mesmo para o ódio e desprezo. Em certo momento, o advogado diz “aquela melancolia se transformava em medo, e a compaixão, em repulsa”. O patrão se sente impotente diante da insubordinação indiferente de Bartleby.
Diante do desconhecido, o advogado aceita Bartleby como o seu carma: a sua missão de vida era ajudar aquele rapaz. Mas o inferno são os outros e logo a presença do estranho escrivão começa a ser tema das rodas de conversas, dos colegas de Wall Street. Ninguém entende aquela estranha figura, que acha melhor não fazer qualquer atividade. E, compelido pela pressão da sociedade, o advogado adota uma medida extrema: muda o seu escritório de lugar, fugindo assim de Bartleby.
Bartleby acaba na prisão por vadiagem - uma vez que os novos advogados do escritório em Wall Street não eram tão tolerantes ou pacientes. Seu ex-chefe vai visitá-lo e é recebido até com certo ódio por Bartleby. A prisão se mostra ainda mais opressora para o escrivão e ali ele sucumbe: quieto e indiferente.
A obra de Melville pode ser considerada predecessora de toda a literatura do absurdo, e, principalmente da obra do tcheco Franz Fafka. Estão ali os mesmos elementos: ambientes opressores, cotidianos e burocráticos. Personagens que flertam com o absurdo e o irreal, mas que ao mesmo tempo, denunciam a falta de sentido do que é chamado de realidade. A narração em primeira pessoa é ágil, diferente do estilo épico das obras mais famosas de Melville.
O narrador advogado não consegue esconder suas fraquezas e contradições, o que enriquece a trama. É caridoso para massagear o seu ego, e não por sinceridade. Acaba abandonando Bartleby não por vontade própria, e sim pela pressão da opinião dos colegas advogados.
Não sabemos compreender Bartleby, assim como não compreendemos aqueles que fogem a regra. O fato da insubordinação do escrivão ser passiva, e até mesmo indiferente, nos deixa ainda mais atônitos. Se fosse um ato de ódio ou de pura contestação, seria mais fácil para o leitor tomar partido e criar o seu julgamento moral, mas diante da indiferença de Bartleby nos sentimos perplexos e confusos. Não sabemos por que alguém simplesmente pode achar melhor não seguir as ordens, sem motivo aparente, sem ideologias, apenas por achar melhor não fazer nada. Bartleby é assim quase um enigma da esfinge “decifra-me ou devoro-te”, parece dizer o escrivão a cada “acho melhor não”.
A edição da Cosacnaify também merece menção. O acabamento é primoroso. O livro vem envolto em uma espécie de envelope, com a frase “melhor não ler”, impressa. A frase, além de extremamente chamativa, ganha força após a leitura do livro. Abrindo o envelope, o leitor tem de descosturar a capa. A partir daí, o leitor deve abrir as páginas, uma a uma, com uma espátula de plástico, que vem junto ao livro. O processo aumenta ainda mais a curiosidade com o que acontecerá na página seguinte, além de ser uma forma de nos sentirmos mais próximos ao ambiente de escrivões do século retrasado.
A leitura de Bartleby, além de extremamente prazerosa, se torna fundamental em um tempo onde a padronização e a especialização são cada vez maiores. Nos tornamos aquilo que fazemos e o fazemos sem saber o motivo. A insubordinação de Bartleby, ainda que sem razão aparente, nos leva a indagar: será que achamos melhor continuar assim?
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Renato
Rios Neto é jornalista e já foi vocalista
da banda Carahter, que teve um CD lançado, mais algumas
músicas gravadas por aí e fez turnês
pelo Brasil, América do Sul e Europa. Ele se considera
um boxeador frustrado e também apaixonado por literatura.
Fale com ele:
xrenato82x@gmail.com
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