
09/10/07
Solidão atrás dos muros
O livro Pequenas Epifanias
(Editora Agir, 2006) de Caio Fernando Abreu é uma
coletânea de crônicas publicadas no jornal Estado
de São Paulo entre 1985 e 1996. A obra organizada
por Gil França Veloso, grande amigo de Caio, mostra
um lado desconhecido por grande parte dos leitores de Caio:
a faceta cronista.
As crônicas não
possuem linhas temáticas ou estruturais definidas,
que as tornam mais interessantes. Mas são especialmente
tocantes as que abordam a doença do escritor gaúcho.
Caio Fernando Abreu morreu de AIDS e tornou pública
a sua condição de soro-positivo através
da série de crônicas Cartas além
dos muros, de 1994.
O leitor familiarizado com
a obra de Caio Fernando Abreu irá encontrar crônicas
que diversas vezes dialogam com a sua literatura. O tom
poético, o olhar subjetivo, está presente
quase sempre, assim como o enfoque em pequenas cenas do
cotidiano.

É esse olhar poético
do cronista para o cotidiano que não torna o livro
datado. Os sentimentos não possuem prazo de validade,
e podemos comprovar isso em crônicas como Pequenas
Epifanias em que o cronista relata a experiência
do surgimento de um novo amor. Atrás das janelas,
retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão
rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos
há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade
de amor. Essa pequena epifania. .
O ápice emocional do
livro são as crônicas que falam sobre a luta
de Caio Fernando Abreu contra a AIDS. Pequenas Epifanias
mostra todo o processo: desde a descoberta da real existência
da doença, através da morte de um amigo próximo
(na crônica A mais justa das saias), até
os delírios de febre, no sofrido final de vida do
autor.
E é justamente aí
em que o autor foge um pouco das crônicas narrativas
e adota um estilo epistolar, ou seja, em forma de cartas.
Como na dramática série: Cartas para
além dos muros. Quatro crônicas, ou melhor,
quatro cartas para os leitores. Na primeira, Caio conta
sobre a imensurável dor que sentia. Se antes escrever
era uma dor metafórica, agora era uma dor física.
Tendo que se ajustar ao teclado, com as suas veias ligadas
a tubos e agulhas. Na segunda carta, os anjos salvadores
são os personagens. Anjos da manhã, como os
funcionários do hospital, que lhe levam pão
e esperança. Anjos da tarde, de calça
jeans e casaco de couro, levando livros, revistas
e casos do mundo exterior. E os enigmáticos anjos
da noite, personagens do mundo da televisão, do rádio,
da música, anjos que tornam a noite em um quarto
de hospital menos solitária. E, na terceira, Caio
finalmente diz sou HIV positivo. A morte está
por perto, mas o escritor prefere dizer A vida grita.
E a luta, continua . A quarta e ultima quarta viria
quase dois anos depois.
Depois dessas cartas, o cronista
não é mais o mesmo. Não há como
negar que o olhar de alguém que sabe que a morte
é próxima é um olhar diferente. As
crônicas de Caio Fernando Abreu são marcadas
por um forte toque pessoal, sendo assim, a diferença
na escrita do autor pós a descoberta do HIV é
claramente sentida pelo leitor. Bom exemplo desse tipo de
texto é a crônica Agostos por dentro,
nela o cronista se vê deslocado na praia do Leme,
no Rio de Janeiro. A explosão de vida e cores contida
em uma praia carioca já não era mais para
ele. A triste constatação emociona até
o mais frio dos leitores. ...Eu não fazia parte,e
pronto...Desde então, tenho uns agostos por dentro,
umas febres. Uma tristeza que nada nem ninguém conserta.
É assim que se começa a partir?, pergunta
Caio.
As emoções vão
se intensificando com a doença. O leitor morre aos
poucos, junto de Caio Fernando Abreu. Em Delírios
de Puro Ódio, o escritor relata como é
não conseguir dormir quando se está tomado
pela febre ou pelo mais puro ódio. Ódio pelo
estado do mundo atual ou ódio com sua debilidade
física? A pergunta ficar no ar.
O turbilhão de emoções
enfrentado pelo leitor só piora no final da obra.
A ultima carta para além dos muros, a ultima crônica
de Caio Fernando Abreu. Uma despedida linda e emocionante
para os seus leitores, que tanto sofreram com o autor. A
carta/crônica começa negativa, relatando o
encontro do escritor com a morte. Na pupila dela,
desmesurados buracos negros que a qualquer segundo poderiam
me sugar para sempre, para o avesso, se eu não permanecer
atento nas pupilas dela vejo meu próprio horror.
Eu, porco sangrando em gritos desafinados, faca enfiada
no ventre, entre convulsões e calafrios indignos,
desabafa um desesperado Caio, a beira do fim. O escritor
acaba concluindo que ainda não foi dessa vez, apesar
de saber que o fim está próximo. Mas ao invés
de um final negativo, temos um sopro de esperança,
Amanhã à meia noite volto a nascer.
Você também. Que seja suave, perfumado nosso
parto entre ervas na manjedoura. Façamos um brinde
a todas as coisas que o Senhor pôs na Terra para nosso
deleite e terror. Brindemos à Vida....
Assim, apesar do final triste,
o que fica é uma mensagem positiva, de amor à
vida, apesar de suas doenças, sua feiúra,
suas imperfeições e de sua falta de sentido.
As pequenas epifanias de Caio, além de serem deliciosas
de se ler, são uma lição de luta e
um brinde à vida.
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ringues
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Renato
Rios Neto é jornalista e já foi vocalista
da banda Carahter, que teve um CD lançado, mais algumas
músicas gravadas por aí e fez turnês
pelo Brasil, América do Sul e Europa. Ele se considera
um boxeador frustrado e também apaixonado por literatura.
Fale com ele:
xrenato82x@gmail.com
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