
25/12/07
O abacaxi natalino
Esta crônica deverá
ser postada exatamente na terça-feira 25 de dezembro
de 2007, por isso não quis me abster em fazer referência
à data. Recordei mentalmente o Natal do ano passado,
que passei cercado de estranhos com tradições
diferentes, como comemorar não o nascimento de Jesus,
mas sim o dia de São Nicolau, seis de dezembro; comer
carne de cordeiro ou cervo ao invés de peru ou bacalhau.
Ensinaram-me às pressas que os três domingos
antecedentes à noite de Natal são os adventos.
Em cada um deles se acende uma vela que deve queimar até
a noite do dia vinte e quatro. Além disso, fui presenteado
com um calendário do mês de dezembro no qual
cada dia era uma janelinha que se abria e de onde saía
um pedaço de chocolate com o formato de símbolos
natalinos sinos, estrelas cadentes, candelabros,
anjos, pinheirinhos, meias com presentes etc. Corais de
vozes infantis apresentavam canções natalinas
populares e compostas por grandes compositores clássicos.
Jardins, praças, toda a cidade enfeitada como se
quisesse se aquecer nessa luz. O verão dos trópicos
não combina muito comidas pesadas e lareira. Lá
havia pinheiros de verdade, cobertos de neve, e nas calçadas
se via marcas de trenó. E lá, assim como aqui,
as pessoas passam por um surto de gentileza e cidadania
do dia vinte até aproximadamente o dia primeiro de
janeiro. Depois voltam ao normal.
Na noite de Natal, reunidos
à mesa para a ceia, embora nenhum dos presentes fosse
religioso, resolveu-se que um dos convidados (uma senhora,
mãe de um casal de crianças) deveria proferir
algumas palavras de ação de graças.
No fim da ceia, após um longo silêncio, quebrado
apenas pelo som de talheres e pela mastigação,
aquela mesma senhora, inspirada talvez pelo discurso inicial
ou pelo vinho, após ter recusado as sobremesas nos
brindou de forma inesperada com uma lembrança de
sua infância. Era Natal na casa materna, ela e mais
alguns parentes tinham acabado de cear frugalmente. Seus
pais lhe ofereceram sobremesa compota de abacaxi,
como havia sido no Natal dos últimos cinco anos.
Ela, na época com sete ou oito anos, se calou por
um instante olhando nos olhos deles até que disse:
Não, obrigada. Estava tão bom que quero
manter o gosto na boca mais um pouquinho. Após o
relato olhamos para a mesa cheia onde havia potes de sorvete,
chocolate, nozes e travessas com biscoito de canela. Houve
um certo mal-estar, quebrado pela anfitriã após
limpar a boca: Olha, lá embaixo tem compota
de abacaxi, viu?
Não sou contra, mas
não gosto do Natal. Os Natais que passei ficaram
muito aquém da fantasia consumista que se propagandeia.
Eu me sentia culpado e não entendia o que essa culpa
realmente significava: só os atores e atrizes dos
comerciais de peru têm um Natal mágico.
Como se um peru ou um presente justificassem toda essa mobilização
e bucolismo. Esperamos o último mês do ano,
a última chance, para por em prática o ideal
do bom cristão reunir os parentes, sermos
tolerantes, solidários e fraternais. O Natal é
na verdade uma forma de tentarmos limpar nossa consciência
e compensá-la por todos os dias do ano em que não
fizemos nada disso. Soma-se à dimensão social
do ritual (se você não o cumpre é um
excluído) a questão religiosa e apocalíptica
do fim do ano e da possibilidade de um recomeço (que
na verdade se dá em todos os outros 365 dias, mas
sem champagne e fogos de artifício).
O fim do ano é repleto
de clichês e automatismos hipócritas. Aliás,
o resto do ano também. Entre valores obsoletos e
a readaptação de costumes há espaço
tanto para a Missa do Galo quanto para ofertas de última
hora dos shoppings. Tanto espaço, iluminado com luzinhas
piscantes, causa uma enorme sensação de vazio.
Enfim, desculpe se maculo o
seu Natal. No fundo eu te desejo boas festas e feliz ano
novo também. Afinal, quantas crianças não
fingem ainda acreditar em Papai Noel para não desencantar
seus pais?
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dorma
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Rafael Silveira
nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente
o processo infinito de aprender a escrever desde os seis
anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta,
só para o que ama. Aí estão incluídos,
além da literatura, música, pintura e cinema
(como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou
seu "Pretérito Imperfeito", reunião
de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com
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