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Tenho um número muito maior de textos inacabados, mas essa tela persiste na inconclusão de eu tê-la irresponsavelmente aleijado em sua imaculada brancura, e me observa da parede como se cruzasse os braços ou me virasse as costas.

25/06/08
O bebedor solitário

Há alguns anos venho tentando terminar um quadro que comecei a pintar inspirado numa fotografia de uma rua boêmia de uma cidade onde nunca estive. Já passei por diversas fases de cor dentro da mesma pintura depois de ter chegado à conclusão de que seria mais criativo ignorar a referência da foto e simplesmente externar impressões subjetivas, já que as objetivas me faltam. Com o acúmulo de inúmeras outras tarefas, os pincéis, tintas, solvente, palheta e espátulas foram sendo guardados e cobertos com um fino lençol de poeira e desânimo. Tenho um número muito maior de textos inacabados, mas essa tela persiste na inconclusão de eu tê-la irresponsavelmente aleijado em sua imaculada brancura, e me observa da parede como se cruzasse os braços ou me virasse as costas.

É uma mesa de bar na calçada em que uma figura está sentada de costas para o observador e de frente para uma fonte de luz. Há uma única figura humana delineada o suficiente no quadro para que se identifique seu sexo - masculino. Ele espera. É a própria persona do quadro. Aguarda a olhar para a luz sobre a mesa e a esperar que aquela luz se propague e inunde o resto da tela, manchado de tons escuros. Se ele pudesse, acho que pintaria o quadro sozinho, ou colocaria fogo em tudo com a chama da vela acesa sobre a mesa. Talvez não o faça porque sabe que aqueles outros vultos esboçados próximo a ele ainda surgirão e beberão com ele eternamente nessa calçada boêmia de fim de tarde. Talvez não o faça por acreditar que aquelas cadeiras vazias em breve poderão estar cheias de vida e de barulho, colorindo o verde escuro do pátio ao seu lado, onde candeias brilham fantasmagóricas e plantas tentam crescer, embora delimitadas por marrom Van Dyck e linhas retas do que viria a ser um vaso.

O bebedor solitário sabe que dentro da taverna estará uma garçonete simpática, a preparar uma bandeja de drinques e pratos para servir aos fregueses. Talvez o nome dela seja também Anna Maria, como na linda canção de Sérgio Endrigo que me embalava enquanto eu me coçava com o problema da medida do azul de cobalto e do branco de titânio, que se fundiriam na gradação da abóbada celeste. Por isso ele não se levanta de uma vez e vai embora, há anos, Anna Maria. Ele virou o rosto em direção à luz da taverna, de onde viria a música e o movimento. As espáduas cobrem suas mãos, mas acho que batuca impaciente ou faz dobraduras de papel com o guardanapo. A noite parece que se adensa e contrasta cada vez mais com os toldos embaçados.

Há momentos em que olho para o quadro e tenho a impressão de que considerá-lo pronto, ou não, só depende da ambição do observador. Quel che è stato è stato,non importa se è finito, Anna Maria... chora Endrigo com sua melancolia suicida. Alguns julgam que só é possível saber quem foi uma pessoa quando ela morre – talvez nem assim (Quanto já não se disse sobre Machado de Assis, por exemplo, sem se chegar a grandes conclusões...). Por falar em Pessoa, foi ele que escreveu num poema de 1933: “Aos que a felicidade é sol, virá a noite. Mas ao que nada espera, tudo que vem é grato.”

Enfim, é uma banalidade incomodar-me por conta do quadro. Acho que nunca terminei nenhum dos meus quadros – adiei seus fins contemplando-os por tempo suficiente até me afeiçoar a sua forma inconclusa... Menos mal. Segundo Schopenhauer, a felicidade de um homem se mede não através da grandeza do que o diverte, mas sim pela minúcia do que o incomoda.

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2007


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Rafael Silveira nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente o processo infinito de aprender a escrever desde os seis anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta, só para o que ama. Aí estão incluídos, além da literatura, música, pintura e cinema (como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou seu "Pretérito Imperfeito", reunião de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com

   
 

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