
12/11/07
A
literatura "digerida"
Folheando uma revista feminina
numa sala de espera, li que, segundo os editores (ou editoras)
o conteúdo da mesma era voltado para os assuntos
mais freqüentemente abordados pelas mulheres: sexo,
moda, a vida das celebridades, homens, horóscopo,
relacionamento (ou seja, homens e sexo outra vez), etc.
Havia algumas questões importantes sobre saúde
e algumas matérias curiosas que eu mesmo li
até o fim. Porém senti falta de temas que
dizem respeito, não só, mas também
às mulheres, e que mereciam algumas daquelas chamativas
páginas tanto quanto uma reportagem sobre maquiagem
definitiva. Por que não oferecer às suas leitoras
o mundo sob uma ótica mais assexual, antes humana,
isenta e jornalística, que feminina no sentido que
se propõe ali? As relações com o próprio
sexo feminino e entre os dois sexos se tornam mais complicadas,
já que se mantém a idéia de que existem
assuntos e coisas "de menina".
"Não progredir
é retroceder", afirmou certa vez a chefe de
Estado na Alemanha, Angela Merkel (isso infelizmente eu
não li na revista). Frase que se aplica ao contexto,
pois, afinal, mantendo a mulher apenas nos assuntos que
ela já domina e fazendo disso um modelo de comportamento
estamos impedindo-a de ser capaz de compartilhar das decisões,
soluções, esperanças, aflições
e alegrias do seu e do nosso mundo. Belas, todos já
sabemos que elas são; o preconceito feminino nesse
caso se maquia de forma bem sutil, tal qual uma falsa amiga
popular. Um comportamento também conhecido da pseudoliteratura
"masculina" sobre futebol, mulheres boas,
automóveis, cerveja, etc.
Na verdade o que se denomina
literatura dirigida, como os exemplos anteriores, são
opiniões de pessoas que analisam, escolhem e rotulam,
de acordo com sua opinião, o que determinado público
deve ler. É uma literatura "digerida",
mastigada, passada a limpo. A intenção muitas
vezes é boa e pode funcionar, mas em alguns casos,
por trás dessa espécie de literatura estão
estratégias de marketing disfarçadas que fomentam
tais publicações. Seu principal objetivo nem
sempre é informar de forma isenta, conscientizar
e entreter seu público-alvo de forma construtiva,
mas principalmente vender, o que normalmente nivela sua
qualidade por baixo. Publicar o que a maioria quer ler vende,
mesmo se for de conteúdo duvidoso. Uma certa revista
masculina de nudez recentemente bateu o recorde de vendas
da banca do Senado nacional em Brasília. Quando uma
publicação alcança determinado lugar
na lista dos mais vendidos ela não precisa mais de
propaganda ativa, a curiosidade das pessoas faz o trabalho.
Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra.
Parece que alguns burros às vezes também compram
livros e periódicos.
Se por um lado as prateleiras
facilitam a seleção por categorias e conseqüentemente
a procura, não seria melhor nós mesmos nos
aventurarmos pelo máximo de gêneros possíveis
e descobrirmos aos poucos quais obras são melhores
ou piores na nossa opinião? Como saber se você
gosta de uma música sem escutá-la?
O fenômeno do direcionamento
de literatura para um público, digamos, não-leitor
é um sintoma da escassez e deficiência de leitura
do cidadão brasileiro comum. Apesar da popularização
e relativo crescimento do consumo de mídias tradicionais,
o mercado, de enorme potencial não utilizado, se
aproveita da inocência e ignorância dos consumidores
e despeja produtos ultrapassados ou de má qualidade
a preços baixos como sendo um bom negócio.
Quem compra tem a impressão de que realmente lê
com qualidade...
É o resultado de se
deixar a formação do gosto popular nas mãos
das editoras. Educação e cultura representam
em média apenas 4% do total de gastos das famílias
brasileiras, segundo dados atuais do IBGE. A sobrevivência
ou subsistência, representada por habitação
(35%) e transporte (18%) ficam com a maior parte do orçamento.
O livro ainda é um investimento alto demais e considerado
fora das "necessidades básicas" da maior
parte da população, ao contrário da
televisão, cada vez mais relevante e influente. Você
estaria lendo esse texto se tivesse que pagar por ele? Não
importa quanto, se você é brasileiro a resposta
é não. Refletir e questionar ainda não
se tornou uma necessidade básica popular. Por isso
gostaria de presenciar mais movimentos de resgate do contato
com a literatura como vejo acontecer com o cinema. O cânone
literário e a atual configuração editorial
farão sentido num futuro pautado na multiplicidade
de gêneros e crescente oferta de informações
gratuitas?
Alheios a isso, a capacidade
e o gosto pela leitura assim como o conhecimento literário
do cidadão médio tendem apenas a diminuir.
Com elas diminui a capacidade de entendimento e conseqüente
modificação do ambiente em que se vive. Ler
não é somente juntar letras ou signos, é
buscar no âmago das palavras ou nas entrelinhas a
mensagem e a ideologia do autor; é assimilar contextos
para sobre e através deles se desenvolver idéias
próprias. É reescrever o que se lê de
acordo com valores e sentimentos novos, tomando-se partido
ou não do autor. Afinal, você vai deixar que
escolham o que você pensa?
Foi para isso que me serviu
a leitura da revista feminina na sala de espera. Mas pensar
dá tanto trabalho, não?...
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dorma
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Rafael Silveira
nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente
o processo infinito de aprender a escrever desde os seis
anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta,
só para o que ama. Aí estão incluídos,
além da literatura, música, pintura e cinema
(como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou
seu "Pretérito Imperfeito", reunião
de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com
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