
02/10/07
Tropas
de uma guerra particular
A festa de lançamento
do filme "Tropa de Elite", do diretor José
Padilha, cria uma ponte sobre um abismo vertiginoso de desigualdade
ao colocar em contato o morro e as celebridades. Ser rico
num país que possui o equivalente a populações
inteiras de miseráveis é necessariamente dramático
e contraditório. O curioso é que, embora grande
parte do orçamento dos abastados brasileiros seja
destinada a alternativas de segurança, outra parte
escorre por caminhos indiretos e acaba financiando a própria
violência. O mais chocante é que nada disso
consegue realmente nos chocar mais. Decidimos jogar esse
jogo de empurra e reclama, fingir que aquilo não
acontece mais aqui ou não é tão ruim
assim quanto declaram as notícias, até que
sejamos pessoalmente envolvidos.
Por falar em notícias,
o filme recém-lançado me remete ao brilhante
documentário "Notícias de uma guerra
particular" (1999) de João Moreira Salles e
Kátia Lund, no qual se acompanha não só
o dia-a-dia dos integrantes do BOPE, Batalhão de
Operações Especiais da Polícia, como
também a ideologia dos morros e o cotidiano de moradores
e traficantes. Entrevistas e dados verídicos explicam,
contextualizam e resgatam de forma imparcial a popularização
da cocaína, o surgimento das facções
do tráfico, a ascensão do Comando Vermelho
e o estabelecimento do submundo das favelas, onde o único
representante do Estado que chega é a Polícia
(e recentemente, a mídia). Essa frase é de
um dos entrevistados, o então delegado Hélio
Luz, que lança uma questão no mínimo
incômoda para todos nós brasileiros: "Será
que a sociedade (brasileira) realmente quer uma Polícia
não-corrupta?" Segundo ele é possível
se ter uma Polícia honesta no Brasil. Já tivemos
e não deu certo. Pois "se ninguém cheira
no morro, então ninguém cheira em Copacabana
também. Vai ter pé na porta na Delfim Moreira."
A propósito da expressão, a violência
da Polícia também é abordada no longa
de Padilha. Nada mais lógico que essa violência
gere mais violência, culminando com mortes para ambos
os lados, polícia e civis.
Para ilustrar o desrespeito
e a impunidade, um exemplo menos drástico, embora
flagrante e diário, é o nosso trânsito:
quem respeita os limites de velocidade e regras das vias
é praticamente atropelado pelos outros carros. Mesmo
assim, porque nós não acreditamos na importância
de se seguir regras, 40.000 pessoas morrem por ano no trânsito.
O número de mortes em decorrência do tráfico
de drogas é tão grande ou maior que o de uma
guerra declarada. Os investimentos nas "tropas de elite"
são altíssimos e não vêm obtendo
resultados positivos. Os "comerciantes do morro"
(para usar o termo que Mano Brown acha adequado) também
investem em armamentos que muitas vezes superam os da própria
Polícia (ou provém dela). No documentário
um jovem do morro exibe diferentes armas de grosso calibre
para a câmera, enquanto recita seus nomes de cor,
dando a impressão de ter saído da tela do
filme "O Senhor das Armas" (2005). A pirataria
de produtos também faz parte das fontes geradoras
de renda para a compra de suprimentos de combate pelos traficantes.
A conclusão a que se chega é de que o morro
vive da renda dos bairros de classe média e nobres,
de forma direta (assaltos ou roubos) ou indireta (tráfico
e pirataria), já que o Estado atua através
da repressão e não da assistência efetiva
a seus moradores. Está bem claro na cabeça
dos jovens "empregados" pelo tráfico, como
mostra o documentário, que eles poderiam trabalhar
e ter uma vida simples e honesta, apesar de sofrida. Porém
centenas deles aguardam sua vaga no tráfico, antes
em busca de respeito e poder, pela sensação
de pertencer a uma causa (embora nociva ou suicida), que
por dinheiro. Afinal a honestidade parece ser a alternativa
apenas para quando não se tem solução
diante do controle da lei - como quando os carros reduzem
sua velocidade para passar por um radar. De tantos infratores,
quantos são autuados? Queremos ser autuados? Se as
leis e as condições das estradas não
permitem, por que fabricar carros que alcançam mais
de 120 Km/h? Se as guerras já acabaram, por que fabricar
Kalashnikovs e lança-morteiros?
O preço da impunidade, da hipocrisia e da libertinagem
é nossa liberdade, é a violência, que
temos que suportar como um imposto compulsório latente,
que nos impede de viver tranqüilos.
Que "Tropa de Elite"
não provoque medo, mas sim indignação
e coragem em sua audiência. Afinal, a maioria de nós
não procura se envolver, nem entender e nem se unir
para mudar as situações que nos perturbam.
Que o filme provoque coragem para reconhecermos que somos
muito mais cúmplices que vítimas da democracia
do "cada um por si e a lei contra todos".
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18/09/07
- Nessun
dorma
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Rafael Silveira
nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente
o processo infinito de aprender a escrever desde os seis
anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta,
só para o que ama. Aí estão incluídos,
além da literatura, música, pintura e cinema
(como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou
seu "Pretérito Imperfeito", reunião
de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com
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