
31/10/08
Olhos de Lynch
I fall in love too
easily é uma de minhas interpretações
vocais favoritas da “primeira fase” do trompetista
Chet Baker. Nem tanto pela suavidade de seu canto ou pelo
fraseado instintivo de seus solos, mas, sobretudo, pela
pertinência da letra na história do próprio
Chet e na de inúmeras outras pessoas que, como ele,
“se apaixonam fácil demais”. Como a própria
letra conclui, nossos corações deveriam aprender
as lições do passado para não sofrer
novamente. Ainda bem que não aprendem (ou não
conseguem desaprender a ter esperança platônica).
Afinal, segundo o cineasta David Lynch em sua recente passagem
por Belo Horizonte, as coisas nada mais são que idéias
pelas quais nos apaixonamos. Pressupostos, valores, sentimentos
com os quais justificamos nossas ações a cada
manhã em que nossos olhos se abrem.
Não sei ao certo se Lynch estabeleceu também
esse paralelo, mas, em certo sentido, as idéias se
comportam como amores reais: investe-se paixão, confiança,
tempo, por vezes dinheiro, e no fim pode-se acabar levando
um contundente pé na bunda; em outras palavras, pode-se
perder todo o investimento feito. Lynch fez a comparação
do processo criativo com o ato de pescar, “pescar
idéias”. Quanto mais fundo se joga a isca,
maior o peixe, isto é, quanto mais fundo se submerge
no estímulo criativo, maior o resultado final. Ao
se sentir que o peixe mordeu a isca, é preciso cansá-lo,
“trabalhá-lo”, depois trazê-lo
a bordo com cautela para que ele não fuja –
por melhor que seja a idéia, ela requer trabalho
de seu idealizador para colocá-la em prática.
São os famosos 10% de inspiração e
90% de transpiração.
Parte desse processo
é passivo, ao menos no meu caso, uma vez que a idéia
(novamente representada por mim como uma mulher) leva algum
tempo para se adequar à nossa realidade. É
preciso mostrar-lhe onde as coisas são guardadas,
de que lado da cama cada um dorme, qual a sua escova de
dentes. Pode ser que um dos dois não se adapte –
idealizador ou idéia. Pode ser que a idéia
traia o idealizador com alguém mais rico ou mais
esperto; ou, também, que ela tenha primas mais bonitas,
nunca se sabe... É preciso arriscar a convivência
caso o primeiro contato tenha sido positivo. A história
de se pegar um peixe grande, ao contrário da história
de se pegar uma grande “gata”, não representa,
para mim, tão bem ter uma boa idéia pelo fato
de que, fora d’água o peixe morre, ele luta
para voltar para seu habitat, para o fundo. As idéias
não lutam contra os idealizadores - elas são
cúmplices, se aliam, são seduzidas, geralmente
por se parecerem e estarem próximas ao contexto do
sedutor. Por isso é que a poesia está nos
olhos de quem vê, não no mundo tangível.
É preciso se deixar levar – pela música,
pela letra, pelo sentimento e também pelas idéias
– para entender e experimentar o processo criativo.
Uma vez que ele pressupõe adaptação,
faz parte da inteligência e pode estar presente em
pequenos atos diários, como escolher uma roupa ou
mudar de caminho. No entanto, pode ser que, de repente,
você se encontre completamente submetido a uma causa
que chama de sua, na qual se reconhece à qual dedica
o melhor de si. E como é difícil dormir quando
se tem um grande amor... ou uma grande idéia.
Agora me ocorre
que as idéias também se assemelham bastante
a um filho – inclusive no que concerne à parte
do sono interrompido. Só que elas nascem da necessidade
e vivem da possibilidade. Nós nascemos porque é
possível, e vivemos com a ilusão de que é
necessário.
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Rafael Silveira
nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente
o processo infinito de aprender a escrever desde os seis
anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta,
só para o que ama. Aí estão incluídos,
além da literatura, música, pintura e cinema
(como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou
seu "Pretérito Imperfeito", reunião
de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com
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