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Fui porta-voz, reprodutor do que outros imaginam que seja a realidade. Porque “a realidade nela mesma existe, mas não significa” [...]

 

23/04/08
Eu, não-Eu e cem Eu


Numa ocasião, no aeroporto de Guarulhos perguntei para duas senhoras que estavam numa fila se aquela era a fila de apresentação para embarque do vôo 784. Responderam que não sabiam. Perguntei para as outras pessoas na frente delas e ouvi a mesma resposta (e ainda, na seqüência em mais dois outros idiomas – “Je ne’n sais rien” e “I don’t know”) – ninguém sabia que fila era aquela, mas estavam ali, talvez “por via das dúvidas” – “eu não estou fazendo nada, você também...” Esse exemplo corriqueiro é uma das mais agressivas e perigosas formas de ignorância: a alienação. É quando você pode, mas não se questiona sobre o seu lugar em determinada situação no mundo. E para poder ser fiel a si mesmo, primeiro é preciso saber quem você é. E nem pense em perguntar a alguém - se você não souber ninguém mais vai saber. Mas saiba que nenhum é só um, todos somos cem mil, como no livro de Pirandello, Um, nenhum e cem mil. E, principalmente, aquilo que você acha ser é apenas uma ilusão necessária, segundo Freud. As pessoas na fila teriam ótimas desculpas para não querer saber qual fila era – elas não concordariam com a minha visão delas. Por isso, também, somos vários, por sermos sociais e históricos. Sociais no sentido de que fomos criados numa cultura que nos ensinou não só uma língua e um jeito de ser, mas também preconceitos, sestros, medos, ritos, crenças... Históricos porque nada do que fazemos ou somos nasceu inteiramente do nosso próprio conhecimento ou trabalho, as coisas já haviam sido começadas há muito, muito tempo atrás. Mesmo essa idéia tão moderna de que Um pode ser Vários já existia na Grécia antiga, na Retórica de Aristóteles (1378 a.C.). Perceba que eu mesmo ainda não falei muito (além de contar o caso do aeroporto), mas repeti o que outras vozes já disseram. Fui porta-voz, reprodutor do que outros imaginam que seja a realidade. Porque “a realidade nela mesma existe, mas não significa”, segundo Patrick Charaudeau. Mas se você não conheceu Charaudeau pessoalmente enquanto ele esteve em Belo Horizonte, como garantir que eu não o inventei, da mesma forma que Fernando Pessoa era Alberto, Ricardo, Álvaro e tantos outros? É um pacto que se faz com tudo que não é Eu. É preciso acreditar nas coisas que nos mantém vivos e que movem o mundo cotidiano do jeito que ele nos parece. Por isso a loucura nada mais é que a proteção que uma pessoa procura contra coisas que para ela não fazem sentido. Aristóteles acreditava ainda que um poeta nasce, mas um orador se constrói. Talvez com o Eu aconteça algo parecido – uma parte nasce conosco e grande parte é moldada pelo entorno. Por isso o verdadeiro morrer é não ser mais capaz de mudar, é parar de nascer (eu não sei bem quem disse isso, mas concordo). A dúvida parece nos levar mais longe que a certeza absoluta, porque nos obriga a agir, tomar consciência, nos informar. O importante não é estar na fila, mas querer o que te espera.

Olhe-se de fora de vez em quando e imagine se o que você está fazendo será importante daqui a dez anos. Agora imagine-se a dez minutos atrás, sem nunca ter lido esse texto.

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2007


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Rafael Silveira nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente o processo infinito de aprender a escrever desde os seis anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta, só para o que ama. Aí estão incluídos, além da literatura, música, pintura e cinema (como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou seu "Pretérito Imperfeito", reunião de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com

   
 

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