
19/08/08
Sobre Livro Sobre
Nada e Rosa secular
“Há muitas
maneiras sérias de não dizer nada, mas só
a poesia é verdadeira.” Essa poesia é
a linguagem usada por Manoel de Barros para (des)escrever
o nada. O leitor desavisado poderá imaginar estar
diante de uma grande piada, levada às últimas
conseqüências, mas a “graça”
dos poemas é bem outra, relativa ao sublime. Supostamente
escrito em idioleto manoelês arcaico, a “apologia
ao ínfimo” está dividida em quatro capítulos
– “Arte de infantilizar formigas”, “Desejar
ser”, “O livro sobre nada” e “Os
Outros: o melhor de mim sou Eles” – embora se
preste bem ao acaso de se abrir uma página qualquer
para constatar sua profundidade concomitante à “vontade
de obsolescência”. Não há contradição:
são “brinquedos de palavras”; não
é um livro para se ler, mas para se desler, para
se banzar, como quando se espera que o sono venha. O leitor
ideal, segundo o poeta, seriam as pedras.
Saio dos livros de Manoel
de Barros quase sempre com uma impressão de vazio
criativo, fenômeno semelhante ao que me ocorre após
ler João Guimarães Rosa. Como fazer brotar
flor em terra devassada? Para que algo de belo nasça
de uma ferida é preciso suplantá-la, é
preciso ser maior que ela em significância. Da ferida,
então, abre-se a chave da existência: “A
gente morre é para provar que viveu” –
arrematou João, em novembro de 1967, pela sua posse
na Academia Brasileira de Letras, que praticamente coincidiu
com seu “encantamento”, sua “descordificação”
(um enfarte) – sua morte física derradeira.
E “ficamos sem saber o que era João e se João
existiu de se pegar” (Drummond). Era míope,
mas escrevia. Era médico como foi soldado. Era rebelde
e diplomata. Vaqueiro poliglota.
Ao lê-los, Manoel
e João, João e Manoel, é como se eu
visse alguém brincando com enredos como brincaria
uma criança de destruir um formigueiro numa remota
Cordisburgo entre veredas que já não há.
O mais assustador, por conseguinte, é voltar à
realidade e descobri-la tão ou mais ficcional que
a literatura.
“Até as
coisas que ele pensava, precisava contar ao Dito, para o
Dito reproduzir com aquela força séria, confirmada,
para então ele acreditar que era mesmo verdade.”
João por vezes
me lembra James (Joyce), voltando sempre em pensamento à
sua terra natal povoada de angústias e finais trágicos
que fazem o leitor fechar o livro e amargar uma dor alheia.
Como delineou Lobo Antunes: “Meu livro é para
ser apanhado como uma doença”. Uma doença
antes cordial que cardíaca. Prosavam como quem versa.
Versavam como quem dança:
“ ‘Bem: eu cuspisse dentro da sopa, você
tinha escrúpulo de tomar? Você gosta de mim
de todo jeito?’ Asco nenhum. O cuspe dela, no beijar,
tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho
de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a erva-cidreira”.
(In: Corpo de Baile)
Causa-me enorme angústia
voltar à realidade depois de imersões prolongadas
nesses Reinos das Desutilidades – lugar onde, para
Manoel, o cu de uma formiga é mais importante que
uma Usina Nuclear. Talvez seja mesmo essa a intenção:
a comunicação do nada universal, do sertão
no coração, do exílio interior, que
encontrassem eco nos outros nadas existentes e se soubessem
insopitavelmente ricos. Ricos pela perda alheia da simplicidade
que os faz eternos, incomuns e frágeis.
“Todo caminho
da gente é resvaloso. Mas, também, cair não
prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe,
a gente volta” - prosa o Rosa.
Frente a minha surpresa e fascínio para com as obras,
cada uma delas parece me perguntar: – Mas por que
é que duvidaste de mim? – como se fossem crianças
do cerrado, de olhos enormes e doídos como botões,
embotados de infância.
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Rafael Silveira
nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente
o processo infinito de aprender a escrever desde os seis
anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta,
só para o que ama. Aí estão incluídos,
além da literatura, música, pintura e cinema
(como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou
seu "Pretérito Imperfeito", reunião
de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com
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