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No caso da adaptação de Meirelles, Saramago se disse descontente apenas com o tamanho do “cão das lágrimas”, personagem que o autor acreditava que deveria ser de porte maior que o animal escolhido para a cena. Talvez assim a potência dramática que o português tentara dar ao cão contrastaria mais com o caos da cidade ao redor, tornada cega. Cidade que eu, particularmente, imaginava menor, mais provinciana.

18/09/08
A visão da cegueira da visão


A visão da cegueira da visão – é um ponto de que não poderia fugir o novo filme de Fernando Meirelles, “Blindness” (2008), apresentado em português brasileiro com o título do livro que o inspira, Ensaio sobre a cegueira, do ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1998 José Saramago.

É um privilégio, antes de tudo, para a língua portuguesa e seus leitores ter um representante que nos brinda com obras assim consistentes e coesas. Sinto pelos milhões de leitores que não têm o prazer de ler os escritos de Saramago no original. Não tenho quase nada contra as traduções; todavia é preciso assumir que há uma parcela de apropriação no ato da tradução, uma decisão restritiva pelo que seria o equivalente linguístico na língua alvo, o que, por vezes, simplesmente não há. Isso se dá tanto na tradução lingüística quanto na intersemiótica – como no caso da adaptação do enredo de Ensaio sobre a cegueira. Qualquer um que tenha lido o romance conseguiria entender a relutância de Saramago, num primeiro momento, com relação à sua filmagem. Grande parte do potencial emocional da narrativa está contida no modo como ela é narrada. Assim como quem assiste ao filme sente-se conduzido por Meirelles e sua tendência à abordagem social. Talvez por isso uma parte das críticas anglófonas tenha sido tendencialmente negativa – quanto não se perde na tradução/transcodificação?

O cinema narra com imagens, é um olho alheio que nos guia pela trama. No entanto, no presente caso, a narrativa é sobre a incapacidade de ver, prestando-se, teoricamente, melhor à literatura, que funciona antes como uma voz interior a construir espaços em princípio neutros, indefinidos. E muitas vezes, por serem indefinidos, são mais amplos, para serem preenchidos pela imaginação do leitor.

Umberto Eco comentou certa vez o caso de uma adaptação de um livro em que a personagem feminina, descrita como sendo uma beldade inigualável, fora representada por uma atriz hollywoodiana que, por mais loira e olho-azulada que fosse, não poderia reconstruir através da aparência o impacto psicológico que a personagem propunha no texto. Uma visão imposta que cega a imaginação.

No caso da adaptação de Meirelles, Saramago se disse descontente apenas com o tamanho do “cão das lágrimas”, personagem que o autor acreditava que deveria ser de porte maior que o animal escolhido para a cena. Talvez assim a potência dramática que o português tentara dar ao cão contrastaria mais com o caos da cidade ao redor, tornada cega. Cidade que eu, particularmente, imaginava menor, mais provinciana.

Minha experiência com o livro foi brutal (e isso é um resultado positivo). A ação se inicia de forma genialmente prosaica, num intervalo de semáforo de trânsito entre vermelho e verde, enquanto a seqüência narrativa cadenciada do português (ambos - língua e autor) nos envolve com a “consistência dos sonhos”, com a brancura da cegueira. Já pelo fato de o motorista que fica cego ter seu veículo logo em seguida roubado, comecei a sorrir para a trama. Quando a cegueira branca começou a se alastrar como uma epidemia foi difícil tanto continuar a ler (pois me questionava sobre as simbologias e estratégias narrativas) quanto abandonar o texto para eventuais pausas. Uma delas foi o desfecho da trama.

“Cegueira branca” não pode ser alcunha ironicamente atribuída à Julianne Moore (embora seja uma das mais extremas corporificações de “branco” que já vi) pois ela interpreta a mulher do médico, a única personagem que não perde a visão.

Falando sério, aqui se propõe um paradoxo intrigante: a cegueira pela luz ou seu excesso, não pela sua ausência, a escuridão. Mais uma possível metáfora proposta pelo enredo: em meio a uma revolução da tecnologia e da capacidade de propagação da informação que experimentamos, o que deveria resultar em “esclarecimento” parece resultar em “ofuscamento da visão”. Acostumar os olhos à escuridão terá sido a opção de um escritor que se refugiou numa ilha, com seu amor?

A metáfora de “ver” para “entender” é um dos temas mais antigos da filosofia ocidental, remetendo-nos ao livro 7 da República de Platão e sua “alegoria da caverna”. Ao perderem a visão, as personagens se dão conta de sua verdadeira “cegueira” mesmo enquanto podiam enxergar. Fora a sucessão de acontecimentos na história em si e a repercussão do tema nos meios modernos, a única coisa de original nisso tudo (e que assim, a meu ver, se justifica) é a versão para o cinema, que teria o poder de nos fazer ver essa cegueira da visão.

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2007


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Rafael Silveira nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente o processo infinito de aprender a escrever desde os seis anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta, só para o que ama. Aí estão incluídos, além da literatura, música, pintura e cinema (como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou seu "Pretérito Imperfeito", reunião de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com

   
 

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