
03/10/08
Sinfonia da metrópole
Chove. Nenhuma chuva
cai. Caem pedras de gelo que logo se misturam ao vidro,
de janelas, portas, pára-brisas, retrovisores, etc.
É o mais próximo que já devemos ter
chegado de neve em Belo Horizonte. Mas o país já
pode se gabar de alguns terremotos, muitas queimadas, ciclones,
tempestades – só faltavam vulcões. De
qualquer forma o calor do sol já basta. O difícil
é que nos trópicos não temos estrutura
para um friozinho que seja - temperaturas abaixo de 10º
já emperram os mecanismos básicos de uma cidade
brasileira comum.
Senti-me reposto ao século XIX quando uma tempestade
causou um corte de energia no bairro. Com direito a jantar
à luz de velas, livros e... bom, mais nada. O telefone,
que precisa de eletricidade para funcionar, também
nanou. Terminei o livro que estava lendo sob a luz da vela.
Depois comecei a escrever este texto e outras coisas à
mão com grande dificuldade, não porque me
faltassem idéias, mas sim por estar tão acostumado
a digitar ao invés de propriamente escrever. Logo
surgiu o instinto da melhor coisa para se fazer quando falta
a luz, desde os primórdios: dormir.
Baseamos boa parte de nossa vida em dispositivos movidos
a eletricidade. Desde bombas de combustível que contabilizam
os litros de gasolina até elevadores e aparelhos
hospitalares. Quantas vidas e quantos milhões não
se perderiam caso o mundo fosse “desligado”
por uma semana? Já após poucas horas de abstinência
à energia elétrica comecei a me sentir incomodado,
sem poder tomar banho nem terminar minhas tarefas.
No entanto o aprendizado de uma dura lição
através de uma futura crise energética parece
inevitável. Não dá para entender por
que soa como ficção que a já precária
estrutura de nossa sociedade possa entrar em colapso através
de uma catástrofe climática, por exemplo.
Catástrofes econômicas repercutem e são
levadas muito mais a sério, em parte por seu maior
imediatismo, mas principalmente pela relação
doentia que nossa cultura desenvolveu com seus bens de consumo.
Erich Fromm explicitava já há algum tempo
essa relação de forma detalhada em seu livro
"Do ter ao ser", preconizando os comportamentos
da “Era do automóvel”. Infelizmente a
conclusão a que ele chega não se compara com
a profundidade do caminho percorrido: seria preciso modificar
toda a nossa configuração social e estrutura
socioeconômica para sermos mais justos, mais humanos,
mais felizes e pacíficos. Isso não se dará
de forma pacífica – se é que um dia
realmente chegará a acontecer – por vários
motivos: o primeiro e mais fundamental deles é o
que as experiências socialistas mostram – a
competição dá motivação
às pessoas e regula a eficiência dos mecanismos
de produção. A disciplina é menos natural
e menos intensa se comparada ao ímpeto da destrutividade
e competitividade humana. O segundo é que nossa aversão
à responsabilidade nos torna dependentes de figuras
que concentrem deveres e, conseqüentemente, poderes
e dinheiro. Seguimos plantando vento, em parte por uma tendência
natural, que Kant julgava ser nossa culpa. Em parte porque
até hoje a tempestade costuma passar.
Como no filme do austríaco Fritz Lang, Metropolis
(1926), o monstro “Moloch”, constituído
de máquinas, após saciar sua fome por vidas,
volta ao sono inquieto característico da sociedade
moderna. Um novo dia nasce, como no início de Berlin
– Sinfonia da cidade grande, de Walter Ruttmann,
(feito em 1927, dois anos antes do famoso crack
da bolsa de Nova Iorque que arrastou o mundo para a depressão
econômica), o ritmo é aos poucos retomado.
Os capôs amassados e pára-brisas quebrados
são lentamente trocados por novos. Os destroços
são vasculhados, removidos, reaproveitados. Os bancos
falidos são comprados por investidores do Oriente.
Ao soar dos despertadores, estamos certos de que um novo
dia nasce, apesar do cansaço.
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Rafael Silveira
nasceu em Belo Horizonte em 1984 e vem vivenciando apaixonadamente
o processo infinito de aprender a escrever desde os seis
anos de idade. Não tem tempo para nada do que gosta,
só para o que ama. Aí estão incluídos,
além da literatura, música, pintura e cinema
(como espectador). Cursa Letras na UFMG desde 2004. Editou
seu "Pretérito Imperfeito", reunião
de poemas, em 2005. Fale com ele: rafael1silver@gmail.com
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